sábado, 26 de dezembro de 2009

A culpa é dos feriados!

A quadra natalícia é propícia à distracção e à quase total alienação das pessoas em relação ao que as envolve. Independentemente da sociedade de informação em que vivemos não dar tréguas, alguns mentores de ideias peregrinas aproveitam, em nome dos grupos de interesse que representam, antecipar algumas estratégias, como que a preparar terreno para o futuro. O poder político também não resiste normalmente à quadra para efectivar algumas medidas que, de outro modo, surtiriam vagas de impopularidade se lançadas no impacto imediato dos dias mais triviais.
Este ano, um tal de Paulo Nunes de Almeida, vice-presidente da Associação Empresarial de Portugal, decidiu brindar os portugueses no dia de natal com uma medida de combate à crise: a redução do número de feriados, e o eventual alargamento da carga horária de trabalho. Trata-se de uma proposta para ser encarada como um “esforço colectivo” a tomar numa altura em que está em causa “a sobrevivência dos postos de trabalho”. Segundo esta sumidade do pensamento empresarial português, Portugal ultrapassa em feriados a média europeia, pelo que esta situação deverá ser revista em nome da produtividade do País.
Mas este representante dos empresários de Portugal, aferindo dos impactos que a medida teria nos meios eclesiásticos (que, como se viu reagiram, pela voz do Bispo do Porto, contra) foi lesto em propor o dia 1 de Dezembro como feriado cobaia a ser extinto. Ora, o dia 1 de Dezembro, feriado que assinala a Restauração da independência de Portugal face a Castela, é perspectivada pelo empresariado português como um artefacto histórico, sem sentido numa época em que estamos inseridos num “contexto ibérico”. Hábil, Paulo Nunes de Almeida assinala mesmo que este tipo de comemoração é até “um pouco contra-natura”.
Demagogia à parte, porque este tipo de argumentação não só ofende a dignidade de um patriota (e, apesar de tudo, ainda os há) como roça mesmo o risível, é preocupante a chantagem permanente que acossa os trabalhadores portugueses. De facto, este tipo de intervenção patética que vem sendo habitual no patronato português - o mesmo que pedincha compensações para aumentar o ordenado mínimo, ou coloca o país a tentar competir com chineses e novos estados membros da União Europeia quando deveria ter dado o salto para outro estádio de desenvolvimento há mais de uma década – revela bem o subdesenvolvimento intelectual em que nos situamos quando nos referimos a empresariado.
Os grandes males que afectam os índices de produtividade em Portugal não estão nos trabalhadores nem nos seus direitos. Eles residem, acima de tudo, no ultramontanismo da maior parte dos detentores dos meios de produção. E não será de estranhar que, com a democracia consolidada como se afirma quase sempre, gente da estirpe deste tal de Paulo Nunes de Almeida não venha acenar com a suspensão do 25 de Abril ou com esse feriado de conotações demasiadamente proletárias que assinala o Dia do Trabalhador. Até porque neste sentido, depressa se entende que a solução passa pelo “esforço colectivo” dos mesmos de sempre. Para que a riqueza floresça em nome do País mais desigual e com os salários mais baixos per capita da União Europeia. Mas, veja-se, a culpa provável, até pode ser dos feriados!

domingo, 13 de dezembro de 2009

Um Doce Abandono

Portugal não esteve, está ou estará em crise. Portugal é a crise. Que o digam alguns dos nossos compatriotas que, escancarando-se a janela de oportunidade, se puseram ao fresco. Recordemos apenas Guterres e Durão, dois renunciantes ao país da crise que foram ao encontro da diáspora dourada com o rectângulo Atlântico da Europa a meter água por todos os lados. Se para o primeiro havia o medo de se atolar no pântano, para o outro faltava engenho para vestir um manequim de tanga. Retórica metafórica à parte, estes senhores deram o salto na hora certa porque o pior, como se vê, estava ainda por vir.

Mas as diásporas douradas inerentes a cargos internacionais são para quem pode, não para quem quer – ou o País arriscava a desertificação massiva. Que o diga o governador do Banco de Portugal que, esgotado de cansaço por andar a pregar sacrifícios necessários aos outros enquanto se deleita num dos salários mais fartos do mundo e faz vista grossa às negociatas das instituições de agiotagem lusitanas, se prepara para abandonar o barco. Com o alto patrocínio do camarada José Sócrates que, na sexta-feira passada, formalizou a candidatura do companheiro à vice-presidência do Banco Central Europeu.

Introduzindo neste episódio alguma seriedade, não deixa de ser inquietante que, após o desempenho de Vítor Constâncio à frente do Banco de Portugal, venha o Primeiro Ministro sugerir esta candidatura. Como de inquietações se vai fazendo a crise, o Presidente da República veio ontem subscrever a proposta, argumentando que “o colega dos tempos do Banco de Portugal e contemporâneo de academia tem muita competência para o desempenho do cargo”, honrando assim o eventual bom nome do País no exterior.

Depois dos episódios que rodearam a supervisão deficitária e negligente à banca nacional por parte da entidade com competência para tal, o Banco de Portugal, Vítor Constâncio, um dos principais responsáveis pelos custos infligidos à economia nacional pelo sector bancário, prepara-se para ver reconhecido o seu “competente” trabalho com uma promoção europeia. É demasiado inquietante que Constâncio não tenha respondido como devido pela sua “competência”, e ainda é mais inquietante este doce abandono que se anuncia com o patrocínio das mais altas individualidades do Estado Português.

domingo, 6 de dezembro de 2009

O Olhar de Korda

Na semana que agora passou estive, em trabalho, na Cordoaria Nacional a fazer o acompanhamento de uma visita pela exposição Korda Conhecido Desconhecido – com cerca de duzentas fotografias do famoso fotógrafo cubano Alberto Korda, autor da célebre fotografia do Che, Guerrillero Solitario -, guiada pela comissária Cristina Vives, acompanhada pela filha mais velha do fotógrafo, Diana Díaz, que tive o prazer, no final, de entrevistar.
A experiência da visita à exposição ficou marcada pela riqueza artística absolutamente estimulante da obra de Korda. Um fotógrafo que começou na moda e na publicidade, focando a sua objectiva na beleza feminina, e que depois transportou toda essa visão de sedução para um dos momentos mais inspiradores do século XX, a Revolução Cubana. E, sobretudo, para o seu líder, Fidel Castro.
Após a visita, complementada com um arrebatador documentário que incluía uma das últimas entrevistas a Alberto Korda, cheguei à fala com Diana Díaz. Apesar de ela não entender o meu português por mais que tentasse entrecortar as palavras, e de não me sentir disposto a expor o meu medíocre castelhano, um tradutor acabou por levar-lhe as minhas poucas perguntas e fazer a ponte para que conseguíssemos dialogar.
Incidi as questões fulcrais da entrevista baseando-me nas minhas próprias dúvidas enquanto estudioso ad-hoc do tema que domino com alguma coerência, sublinhando a relação de amizade que ligava o fotógrafo a Fidel Castro até 1968. Eram amigos íntimos, amigos de sempre, homens ligados na amizade que se reconheciam mutuamente pela inteligência e pelos ideais humanistas que os uniam. Diana falou-me de tudo isso, da relação intensa entre o líder político e o fotógrafo durante aqueles anos fulgurantes da Revolução Cubana.
Depois, cada um seguiu o seu rumo, como se houvesse um destino que ditasse papéis distintos, inconciliáveis para que o percurso de um e de outro se mantivesse simétrico. Mas, garantiu-me Diana, permaneceram sempre ligados por um forte sentimento de amizade e respeito, que só se rompeu em 2001, com a morte de Alberto Korda, em Paris.
Quando se pesquisa e lê o que se escreveu e disse sobre Korda, sente-se que esta separação nunca está bem explicada. Referi essa inquietação a Diana, temendo que estivesse a entrar por um caminho delicado. Abordei a dúvida invocando o ano de 1968, quando o Estado Cubano, através da “Ofensiva Revolucionária”, tomou todos os pequenos negócios privados em Cuba, incluindo o Studio Korda e consequentemente todo o espólio fotográfico aí reunido.
Apelando ao maior rigor possível na transmissão das suas palavras quanto ao que me iria contar, Diana falou-me do quanto esse excesso revolucionário (as palavras são minhas) magoara o seu pai. Mas Korda manteve-se sempre fiel à revolução, mesmo que a dinâmica política e social caminhasse para uma institucionalização crescente. Ao que me contou, o país institucionalizou-se, aqueles que rodeavam Fidel também. Era tempo de Alberto Korda escolher entre a sua própria institucionalização, que garantiria continuar a seguir o líder cubano, ou a liberdade enquanto fotógrafo e artista. Entre tornar-se militar ou quadro do partido comunista, Korda escolheu ser livre, livre para criar e fazer o que mais gostava: a fotografia.
Nas palavras de Diana, Korda teve três grandes paixões na vida, as mulheres, a Revolução (e consequentemente Fidel) e o fundo do mar. Era então tempo de se virar para aquela que a sua objectiva ainda não tivera a hipótese de explorar: o mar. Durante mais de dez anos fez, em Havana, fotografia subaquática; um refúgio e uma vontade.
Como sempre, quando se fala sobre o passado, a minha entrevistada terá deixado muito para contar. Não é objectivo do meio para onde escrevo fazer artigos ou entrevistas de fundo. Porém, no essencial, a virtude daqueles minutos foi trazer mais alguma luz sobre a relação entre dois homens absolutamente fascinantes, ligados pela admiração e amizade mútuas. E quando Korda faleceu, Fidel esteve lá para um último adeus.
Concluí a entrevista, apertei a mão a Diana e retirei-me. Durante alguns segundos, quase à saída do espaço expositivo, detive-me a observar uma foto de Korda com Fidel, captada por um fotógrafo não identificado. Ocorreu-me que acabara de estar com a filha de um homem que conheceu e privou com lendas do nosso tempo, Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara. Foi como se por resquícios de tempo e espirais de espaço incerto tivesse eu também privado com eles. Hasta siempre!

fotos: Alberto Korda

Entrevista disponível em Lisboa Cultural, nº 142

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Coppola

Hoje, em conversa com um amigo que esteve presente no Estoril aquando da apresentação de “Tetro”, o último filme de Francis Ford Coppola, ocorreu-me que numa lista prévia que fiz de “filmes da minha vida” (os quais dou eco num blogue ocasional com o mesmo nome) só incluía um único título do realizador norte-americano, “Apocalypse Now”. Equívoco meu, o qual depressa rectifiquei através de uma breve consulta a um sem-número de notas que dediquei a filmes de Coppola, da saga “O Padrinho” a “Drácula”, passando por “One From the Heart” ou “Os Marginais”. Filmes que inevitavelmente patrocinaram em tom aceso e flamejante o meu amor pelo cinema.
Coppola, que incoerentemente talvez, por circunstâncias errantes dos caminhos da cinéfilia e das modas instaladas cá pelo burgo, se tornou um autor algo negligenciado nos últimos anos, apresenta-se hoje, mais uma vez, como um nome incontornável da história da sétima arte, ao nível dos grandes mestres do cinema clássico norte-americano. Para isso bastou uma vinda a Portugal para um festival de cinema e toda a gente aclama este great director que deu estampa a alguns dos mais notáveis personagens do cinema moderno: Michael Corleone (Al Pacino), em “O Padrinho”; Coronel Kurtz (Marlon Brando) e Tenente Kilgore (Robert Duval), em “Apocalypse Now”; Leila (Nastassja Kinski), em “One From the Heart”; Motorcycle Boy (Mickey Rourke), em "Rumble Fish"; Conde Dracula, em “Dracula”. São apenas parte de um elenco de personagens que me vincam a memória e me levam a considerá-lo, com a maior das reverências, um dos maiores realizadores da história do cinema.
Mas nem só de grandes personagens se compreende o cinema de Coppola. Este ítalo-americano de Detroit que fez um punhado de obras-primas ao longo da sua carreira, custeando em prol da arte suprema a sua própria sanidade e a sua sustentação financeira, e que hoje promove os seus filmes mais ou menos experimentais a custas da vinicultura produzida nuns largos hectares californianos, produziu cenas arrebatadoras que assaltam forçosamente o nosso imaginário cinéfilo. Daquela história de amor maior que a vida, numa Las Vegas imaginada em decors de néon, de “One From the Heart” à abertura operática de uma selva a eclipsar-se sob um bombardeamento ao som de “The End”, dos Doors ,nessa demência permanente que foi, e é, “Apocalypse Now”, ou ao desespero silencioso de Michael Corleone a amparar a filha assassinada na escadaria da Ópera de Palermo, em “O Padrinho III”. Três singelos exemplos de arte maior que, como uma dádiva suprema, Coppola registou para a posteridade.
Fez-me bem falar hoje sobre Coppola. Deu-me vontade de agarrar nuns quantos dvds que espreitam das prateleiras lá de casa e dedicar-me a rever muito deste grande cinema. Ainda mais porque, em Coppola, como nos grandes mestres italianos ou em alguns contemporâneos de excepção como Scorsese ou Lynch, se encontram sempre motivos superiores para justificar a mais atenta das revisões. E, enquanto o tempo não me permite uma saltada obrigatória ao King para espreitar este “Tetro”, arrisco a respirar alguns dos filmes da minha vida, como o já citado “Apocalypse Now” (a versão “redux” potencia ainda mais a experiência) ou esse musical único e, ainda hoje, surpreendente que é “One From the Heart”.

sábado, 14 de novembro de 2009

Caindo de Podre

Os mais cépticos quanto à Revolução de Abril – alguns dos quais longe de serem apologistas do salazarismo – apontam muitas vezes que o 25 de Abril foi resultado do estado de decadência do regime, ou seja, “o regime caiu de podre”. Na verdade, a história nunca é tão linear quanto as tentações que regularmente nos levam a conjecturar e afirmar as certezas mais certas, logo, esta afirmação enferma no simplismo se não encontrar troços mais alargados para se sustentar. Não há propriamente sentidos únicos na história, sobretudo quando tratamos a contemporaneidade e nos envolvemos mais com os vivos que com os mortos. Portanto, há inúmeras vias para explorar e desenvolver o assunto, sem retirar ou subestimar seja qual for a perspectiva de análise e grau de distanciamento dos factos.
Olhando para as mais diversas leituras que foram feitas sobre o fim do Estado Novo, é justo percebermos que, para além de outros factores mais complexos, o regime estava de facto “podre” e isso proporcionou a conjuntura favorável ao golpe que desencadeou a transição para a democracia. No fundo, este fenómeno histórico tinha que acontecer naquele momento porque as fraquezas do poder eram cada vez mais evidentes, sobretudo pelos efeitos da guerra. Em oposição, poderemos fazer a comparação com o que se passou no pós-guerra, logo a seguir a 1945, quando os ventos que sopravam eram favoráveis à mudança, com a derrota do nazismo e do fascismo, e no povo português se desenhava uma explícita vontade de pôr fim à ditadura. Porém, nessa época, o regime teve capacidade de responder e frustrar (através dos recursos mais abjectos e desumanos à mercê de um Estado policial e repressivo) a vontade popular.
Há uns anos atrás, num seminário de investigação em que os oradores compunham um séquito dos mais notáveis da academia portuguesa, daquela que escreve regularmente nos jornais e aparece na televisão e teima em dourar a investigação social com intrincados processos metodológicos e números complexos ao serviço da ciência, considerava-se que a democracia portuguesa era já suficientemente adulta para estar absolutamente consolidada. Num ímpeto intervim, questionando o painel se isso significava uma espécie de fim da história, aventando a hipótese de estarmos de tal forma seguros da nossa democracia que nada a poderia prostrar, independentemente da integração em instituições supra-nacionais, como a União Europeia e a NATO.
Como é evidente, nem estávamos no fim da história – a tese fez, nos últimos anos, furor com Fukuyama mas depressa se revelou um logro – nem nenhum regime se consolida tão solidamente que não possa ser derrubado ou (recuperando a tese do “regime que cai de podre”) derrubar-se por si mesmo, independentemente das estruturas supra-nacionais às quais pertencemos. Estando completamente de acordo com a resposta à minha inquietação, senti que o sentido dado procurava um equilíbrio mais científico que racionalmente hipotético, como se não devêssemos sequer equacionar que mesmo as mais evoluídas democracias podem um dia ceder. Até porque esses factores externos, essa espécie de guardiões supra-estatais que mantêm a ordem e vigiam o sistema político do ponto de vista da manutenção do regime mais favorável ao concerto dos Estados membros, podem também falhar. Num resumo, a história anuncia que a democracia, como qualquer outro regime, não será perpétua; a vontade, por mais hipotética que se revele, procura que esta democracia o seja.
Apesar de condicionantes e variáveis de diversa ordem, é ponto assente que qualquer modelo de democracia se constrói permanentemente; é insuficientemente inacabado na medida em que exige dos cidadãos esforços que as paternalistas ditaduras arrancadas à história jamais poderiam conceber. E, assim, chegamos a um ponto fulcral: a construção permanente da democracia como sinal da sua própria consolidação, partindo do princípio quase unânime de que o poder do povo e pelo povo é mais frágil do que qualquer outro, sobretudo se o povo não entender que é ele, mais que uma entidade abstracta colectiva, quem deve comandar, sem limitar apenas ao voto esse mesmo poder. Viveremos então numa democracia?
O politólogo norte-americano Robert Dahl classificou o que, regularmente, denominamos de democracias de modelo liberal como poliarquias. O que, e de forma muito sucinta, compreende os regimes nos quais o poder se estratifica em múltiplos pontos dispostos horizontalmente, permitindo que, em igualdade de circunstâncias, haja disputa política por grupos plurais e em que a base de participação política é significativamente alargada. Para a maioria dos estudiosos, o modelo de democracia predominante no ocidente é este uma vez que ele reflecte, aparentemente, o modelo norte-americano.
Num aparte, explico o uso do “aparentemente”, porque as democracias (poliarquicas ou em vias de o ser), à semelhança dos regimes ditatoriais, vivem também de aparências e manipulações constantes, sendo duvidosas as estratificações horizontais do poder quando nos confrontamos com factos e dados concretos. Divergem sim, e isso é unânime, nos métodos e nas formas como o Poder constrói as suas formas de legitimação. Talvez por isso, existe a perspectiva de se cultivar formalmente nas poliarquias a figura da separação de poderes, que serve para legitimar opções e actos concretos do sistema político e empreende, com o sufrágio e a liberdade de expressão, a imagem mais vincada de um regime democrático.
Voltando à poliarquia e centrando a análise na observação do caso português, depressa nos apercebemos que enfermamos de igualdade de disputa política (como quase todas as poliarquias do mundo, sobretudo a mais poderosa, os EUA) e ainda mais desigualdades na participação dos cidadãos, seja por uma deficitária cultura cívica, seja por bloqueios geridos pela efectiva partidocracia que caracteriza a sociedade portuguesa. A imperfeita democracia portuguesa (insuficientemente poliarquica, apesar da institucionalização de grupos de pressão e de inúmeros grupos de interesse que apostam na invisibilidade ao contrário do lobbie à maneira anglo-saxónica) esboroa-se agora no rotundo falhanço do seu sistema de separação de poderes e na perversa ligação que envolve os poderes políticos, económicos e judiciais. Este falhanço contamina permanentemente a consolidação do regime democrático, minando a sua credibilidade e a sua continuidade, como se tal pudesse significar um argumento de erosão acelerada do regime.
Enfrentando para além de uma crise externa, uma crise económica estrutural causada em larga medida pela delapidação dos recursos por parte de grupos ligados aos poderes ou a segmentos do próprio poder político executivo, Portugal perfila-se como um novo desafio ao estudo dos fenómenos políticos. Se os politólogos americanos enalteceram o pioneirismo português naquilo que denominaram a terceira vaga de democratização, hoje, pelas falhas estruturais nunca superadas e pelas deficientes supra-estruturas que os agentes políticos erigiram ao longo destes 35 anos, talvez seja caso para questionar se Portugal não poderá vir a tornar-se, de novo, pioneiro num outro sentido. À imagem do velho e tacanho regime que o antecedeu, não estará este também caindo de podre?

sábado, 7 de novembro de 2009

O Emprego Certo

Recordo perfeitamente, no dia em que apresentei a minha dissertação de licenciatura, que após o descomprimir do momento fiquei à conversa com os meus avaliadores. O mais velho, um destacado catedrático da praça, não teve qualquer recato em afirmar que o melhor veículo para garantir um emprego certo é, definitivamente, um partido político. E, numa sinceridade espontânea, acrescentou que se fosse jovem admitiria a filiação em qualquer um para se assegurar, sugerindo-me um lacónico "pense nisso".
Ao longo dos meus anos de vida profissional no sector público acabei por entender a evidência dessas palavras. Conheci gente de todos os quadrantes políticos e até vi o cartão de um partido resguardar da ameaça do despedimento, mesmo sendo o “poder” do contra. Ali estava a garantia do emprego certo que o catedrático falava, ainda mais porque, efectivamente, aconteceram uns tantos despedimentos "apartidários".
Hoje, ao folhear um jornal, deparo com a indignação (legítima) da oposição na Câmara Municipal de Loures ao presidente, razão pela qual recordo este episódio. Ao que se apurou, o presidente eleito pelo PS nomeou, para o seu gabinete, a filha e o cunhado, alegando a independência da escolha imanente a um cargo de assessoria que requer a máxima confiança pessoal. Nepotismo, aliado aos interesses do partido, resumem o episódio.
Nada demais, na procura do emprego certo e garantido, e de gravidade menor se olharmos para outros processos bem mais complexos. Eu, permitam-me, considero-o um episódio imoral e sintomático de uma crise profunda dos valores da res publica. Infelizmente, é um entre muitos por esse país fora.

domingo, 1 de novembro de 2009

O Talentoso Senhor Vara

Consta que de Armando Vara, José Sócrates disse um dia ser vítima de “inveja social”. É um conceito interessante, sobretudo quando todos sabemos ser Portugal um país de “invejosos”. E para não sair do padrão, há que reconhecer que o Senhor Vara tem sido alvo de muitas invejas ao longo da sua meteórica carreira política e “empresarial”, compreendida entre a distrital do PS de Bragança e a administração do maior banco privado português.
Olhando para o currículo do Senhor Vara, e cruzando esse currículo com as inúmeras notícias associadas ao seu nome, basta perdermos o sentido da honestidade e da moral num ápice para nos assumirmos como “invejosos”. Quantos caixas de banco militantes de um partido não invejam aquele que um dia chegou a administrador do banco? E quantos militantes de um partido não invejam os seus companheiros que um dia se tornaram ministros ou secretários de Estado?
O Senhor Vara é um homem talentoso. Certamente, foi por todo esse talento que conseguiu palmilhar tantos degraus na carreira e hoje ser somente o vice-presidente do BCP. Dir-se-á que o Senhor Vara tem uma enorme queda para o negócio e, em Portugal, isso significa probabilidades de se cumprirem os sonhos mais almejados. Como é evidente, quando se cumprem, surgem as invejas de portuguesinhos medíocres que não passam de caixas de banco ou de meros militantes de base de um partido.
O caminho do talentoso Senhor Vara é tão romanesco como o título deste artigo. Isto, porque é um caminho contado pela “inveja social” da imprensa, voz de um povo de invejosos. O Senhor Vara passou de caixa de banco a político profissional, com António Guterres a fazer dele secretário de Estado da Administração Interna e, depois, seu ministro adjunto. É um percurso arrebatador, até que vêm os invejosos acusar o Senhor Vara de criar uma espécie de instituição fantasma - a Fundação para a Prevenção e Segurança - onde foi só fartar vilanagem. Provas? Zero, porque as invejas não conduzem à justiça, nem na terra nem no céu, ou não fosse um dos pecados capitais.
Quando o PS voltou ao poder, o talentoso Senhor Vara passou a ser administrador da Caixa Geral de Depósitos. «Grande emprego», bramiram os invejosos. E até se inventou por aí que na universidade onde o Senhor Vara cursava Relações Internacionais - a muito notada Independente onde o amigo e camarada Sócrates cursara Engenharia - tocaram sinos a rebate para que saísse a certidão de fim de curso, tida como essencial para que este homem de múltiplos recursos intelectuais assumisse o cargo na CGD. Nada mais que boatos invejosos, como o tempo sempre faz provar neste nosso Portugal.
Mas a campanha de “inveja social” não dá tréguas ao talentoso Senhor Vara. Uma alegada escuta policial envolve o vice-presidente do BCP numa tal de operação “Face Oculta”, baseada em alegados subornos a políticos e quadros de empresas de capital público. E assim, está feito o homem arguido num processo, com uma mão cheia de camaradas socialistas… Como se costuma dizer e redizer para as bandas do Largo do Rato, «é (mais) uma cabala para atingir o PS». E, acrescento, o talentoso Senhor Vara, que se torna recorrentemente um caso de polícia.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O Meu Alentejo

A imensidão da paisagem sublime e agreste, sulcada por rastros de suor e sangue de subjugados e sobreviventes, entre sobreiros e oliveiras polvilhadas no horizonte, trigo ao vento esbracejando, poejo e tomilho aromatizando as brisas quentes do Sul, vinhedos carregados do melhor néctar que outrora os deuses e os homens souberam fadar; eis o Alentejo, a terra que me conta as histórias. É ali que está parte do coração de mim, o primogénito da geração urbana que atravessou o Tejo e se fixou na capital há quase quarenta anos atrás. Como se o tempo tivesse por vezes o segredo de não significar nada mais que um sopro quando voltamos onde nem nunca estivemos.
A paz no desejo imenso de reencontrar a planície infinita, entre a alegria de sentir debaixo dos pés as raízes que me estão nos genes e o peso da recordação das tragédias marcadas numa “Seara de Vento”, como a que Manuel da Fonseca, esse contemporâneo e companheiro de lutas de meu avô Carraça, tão rutilantemente ilustrou, levam-me a sonhar o meu Alentejo. Como se nos meus passos por terras curtidas no braseiro do sol, vivesse um passado onde tantas vezes “os camponeses arrastam as botas cardadas, num ressoar soturno”. Essa, e tantas outras histórias que fizeram parte do meu imaginário por vezes longínquo dessa ruralidade de tragédia e de sofrimento, mas também de riso e de comédia.
Neste Alentejo habitam as histórias que a minha avó me contava em criança. Eram tempos de dor e crueldade, assentes na brutal exploração do trabalho de sol a sol para riqueza dos senhores da terra. Mas, neste mundo de traços tão vincadamente feudalistas, o latifúndio mergulhava no mistério, até porque, em tempos de breu, os fantasmas surgiam vindos sabe-se lá de onde e torneavam na noite as esquinas caiadas de branco para espanto de caminhantes solitários. E, já que evoco os fantasmas, confesso que jamais esquecerei o arrepio na espinha que me provocava aquela história da viúva eremita que em noites de lua nova, numa encruzilhada remota, falava com o demónio, não para atingir perfeições metafísicas à Fausto, mas para recuperar o marido que deus levara sem aviso prévio.
Para qualquer mal, fosse do sobrenatural ou do natural, havia sempre uma mezinha dada pela terra para a maleita. Desde as ervas para fins muito delicados do corpo e do espírito que cresciam em locais remotos da planície e obedeciam a uma arte precisa para serem colhidas à aguardente misturada em leite bem quente para combater o pingo ou males piores do inverno, passando por todos os tipos de efusões para todo e qualquer problema, a magia soltava-se sempre por terras desse Alentejo narrado em viva voz com brilhantismo e graça pela minha querida avó Cristina. Era ela a mulher que me abria a janela para esse além-Tejo que o meu lado paterno deixara definitivamente para trás; e só agora, passados quase vinte anos sobre o seu desaparecimento, o entendi.
Voltei do Alentejo. Dois dias apenas, ali pela raia, local que presumo não ter laços com a minha família, nem mesmo do lado materno, mais extenso e nómada. Independentemente disso, e como se da Espanha ao mar se compreendesse um mundo, ali está este pedaço de mundo onde se encontra a raiz de onde eu venho. E, como dizem que os alfacinhas não têm terra, tenho para mim a ideia de que neste vasto Alentejo, seja para as bandas do mar seja no caminho de Castela, se guarda algures uma terra que é minha.
foto: Patricia Passarinho

terça-feira, 29 de setembro de 2009

O que fazer com estes votos

Ao longo de quatro anos e meio de maioria absoluta na Assembleia da República foi difícil, se não mesmo impossível, ao primeiro-ministro conjugar verbos como ouvir, dialogar, negociar e outros tantos que instruem acções eventualmente construtivas em democracia. Aliando às lacunas ou omissões de conjugação verbal o estado a que chegámos, o resultado está à vista de todos: o PS ganhou as eleições mas perdeu mais de meio milhão de votos e, consequentemente, a maioria absoluta.
Agora, cabe a Sócrates instruir-se na conjugação desses verbos outrora malditos. Nada voltará a ser como dantes, independentemente do eleitorado até lhe ter providenciado um super-Paulo Portas como garantia de prossecução daquela velha política de sempre. Tudo uma mera questão de tempo mas, com a nuance de obrigar a um diálogo mais extensível no panorama parlamentar, mesmo que à ponta direita do hemiciclo surja o interlocutor privilegiado.
Felizmente que nem todos pensam como eu e, esperançosamente, olham para um novo Sócrates como o ser pensante que equaciona agora o que fazer com estes (muitos menos) votos. Assim, alimentam a esperança (ou quem sabe a fé) numa grande união das esquerdas, com a agora também reforçada ala esquerda do parlamento. Sinceramente, e perdoem-me os crédulos, acho que Sócrates já decidiu não só o que fazer com os seus votos como com os daqueles que o podem fazer sobreviver nesta legislatura com morte anunciada, lá para meados de 2012.

sábado, 26 de setembro de 2009

Instantâneos de Campanha

1. Na recta final da campanha das legislativas de domingo, registo com alguma curiosidade os últimos apelos ao voto de José Sócrates e Paulo Portas. Estes dois candidatos argumentam como se o passado fosse uma espécie de realidade paralela onde nem um nem outro tivessem estado e agido enquanto actores políticos.

Diz Portas, ex-Ministro de Estado de Barroso e Santana, que o CDS “merece o benefício da dúvida”; pergunta o eleitor: mas o que mudou no ex-ministro Portas para que o candidato Portas possa merecer o “beneficio da dúvida”? Parece que, espremendo o fruto para extrair o suco, soçobra o mesmo de sempre: muita demagogia, ilustrada num discurso fácil e habilmente "tabloidizado" que aponta a uma transversalidade quase apolitizada. Tudo em prol da senha de entrada no governo que aí venha. Portas é o partido, e cada vez mais se assume do tipo catch- all, para usar a terminologia de Otto Kircheimer.
Sócrates sabe que Louçã já teve melhores dias, tal como ele. Sabendo de antemão o que vale e a desilusão que personificou ao longo destes penosos quatro anos e meio, o ainda primeiro-ministro decide encarnar no mito do “voto útil” de modo a estancar o descontentamento de alguns tradicionais eleitores do seu partido. Não me ocorre se alguma vez um candidato directo a primeiro-ministro se assumiu tão claramente como sinónimo de “voto útil” porque, desmontando o conceito, há indícios de que isso represente uma auto-subvalorização perante o eleitorado. É como alguém que sabe que não presta, mas que, a seu ver, representa a única solução a um mal maior. Perante os factos e a necessidade, Sócrates acabou por se assumir.


2. Aparentemente, a dinâmica criada pelo Bloco de Esquerda entre as eleições europeias e o inicio da campanha pareciam fazer antever uma votação estrondosa para a dimensão do partido. Apercebendo-se claramente que o descontentamento de uma parcela do eleitorado socialista era captado pelo BE, Louçã transformou-se numa espécie de “Alice” num país de maravilhas que a sua imaginação projectou. Subitamente, o guardião da superior moral da esquerda, até aí embrenhado numa completa e descomprometida inconsequência ideológica que representava o seu maior trunfo para conquistar votos, libertou o seu trotskismo genético e radicalizou o discurso. Pode-se dizer que, provavelmente, Louçã nunca pensou que os seus “socialistas” fossem confrontados com os laivos mais “radicais” do seu programa eleitoral mas, Sócrates teve a habilidade de o denunciar num debate televisivo e, assim, colocou a semente da dúvida no seu eleitorado fugitivo, o qual, obviamente, não se revê em soluções tidas como "extremistas".

De facto, e se as sondagens acabarem por demonstrar semelhança à realidade de domingo, a chave da vitória de Sócrates pode encontrar justificação na quebra táctica do BE. Ao perder parte da parcela do descontentamento socialista, Louçã e o BE dão a vitória ao PS, não obstante conseguirem transformar-se na terceira força parlamentar. Mas, é evidente que, neste caso, o bom não se substitui ao óptimo e lança-se o desafio de, após uma década de existência, o BE ser obrigado a assumir as suas sínteses ideológicas, provenientes da sua própria génese e do seu desenvolvimento enquanto partido. A não ser que Louçã se renda à tentação de ser o limiano de Sócrates, tornando tudo muito mais transparente…


3. Para muitos, a forma quase tímida como Jerónimo de Sousa se comportou nos debates com os seus adversários poderia fazer antever o descalabro eleitoral da CDU. Mas o carisma popular do secretário geral do PCP e a postura quase sempre construtiva do seu discurso demonstraram que Jerónimo vale votos para lá do PCP. A entrevista que deu a Ricardo Araújo Pereira fez mais uma vez prova do seu humor, simpatia, e humanismo, desmistificando os traços rudes e grosseiros com que se continuam a pintar os comunistas na sociedade portuguesa. Para além disso, Jerónimo, apesar de comunista, é um gentleman e não resistiu mesmo a pedir desculpa aos jornalistas, que o acompanharam ao longo destas duas semanas, pela rotineira ementa de campanha. Febras de porco, para que se saiba.


4. O PSD desta campanha foi um partido à imagem de Manuela Ferreira Leite. Pálido e fantasmagórico. Já se suspeitava que sempre que Ferreira Leite usasse da palavra havia votos a perderem-se. Depois, veio a teimosia exponencial na tese da “asfixia democrática” representada pelo poder socialista, tese esta a que insistentemente recorreu para chegar ao cúmulo de afirmar que os resultados das projecções que derrotam o PSD se devem ao medo instalado na sociedade portuguesa. Pelo caminho, houve demasiada trapalhada e a “verdade” apregoada foi-se transformando em rábula. Veja-se o “misterioso” caso das escutas de Belém, os votos comprados pelos candidatos arguidos ou o modelo democrático da Madeira. Asfixiada em fantasmas, Ferreira Leite só conseguiu elencar o que não faria se fosse poder. Nada mais. Por tudo isto, vai perder as eleições.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Desvalorização e Desmotivação

"O actual quadro legal aplicável ao regime de carreiras dos trabalhadores da Administração Pública e Local é, efectivamente, a maior ofensiva que um governo, em democracia, impôs ao sector público e aos seus recursos humanos. Sob o manto do incremento da produtividade e da competência esta legislatura, sustentada na maioria parlamentar absoluta do Partido Socialista, que agora termina, ao atacar implacavelmente os trabalhadores do sector público, é responsável pela maior horda de legislação lesiva à prestação de serviços públicos de qualidade, seja através do Estado, seja através dos municípios.

De inspiração absolutamente tecnocrática e apresentando um desfasamento completo daquilo que são e devem ser as condições necessárias para a prestação de serviços públicos de qualidade em prol das populações, o quadro legal imposto pela Lei 12-A/2008, e legislação sucedânea e complementar – onde inevitavelmente se inclui o SIADAP (Sistema Integrado de Avaliação de Desempenho na Administração Pública) -, ataca impiedosamente os trabalhadores do sector público, consumando um objectivo que sabíamos subjacente à política de anteriores governos que, ao longos dos anos, têm apontado os trabalhadores da Administração Pública como uma das principais barreiras ao desenvolvimento do País.
Ao usar os trabalhadores e os seus direitos laborais como álibi para a sua incompetência, os responsáveis políticos deste e de anteriores governos fomentaram na sociedade portuguesa o estigma de que a responsabilidade pelo falhanço das políticas públicas não resulta tanto das suas opções e da acção executiva dos agentes políticos, mas sim dos trabalhadores e dos direitos que adquiriram ou foram adquirindo com a sua luta desde a Revolução de Abril. Como resultado dessa desculpabilização, os trabalhadores da Administração Pública e Local encontram-se sob uma ofensiva constante que visa, abertamente, colocar entraves à prossecução de serviços públicos de qualidade, encaminhando os segmentos mais rentáveis do sector público para o sector privado. O actual quadro legal, ao mascarar-se de benéfico para a valorização dos recursos humanos do Estado, imprimindo índices de competitividade e produtividade como formas de valorização do trabalho, é o mais evidente dos logros a que nos têm submetido. Deixamos, e seguir, apenas dois exemplos que ilustram o que temos vindo a denunciar.
Em primeiro, o logro começa com a atribuição de cotas para as notas mais valorizadas (Muito Bom e Excelente), o que, não só é contraproducente como inviabiliza que um determinado serviço público consiga reunir um número alargado de funcionários de excelência. Imaginemos o dilema que assaltará um director de serviços perante uma cota que lhe permitirá apenas atribuir um “excelente”e dois “muito bons” para um universo bem mais alargado de trabalhadores que se encaixam nessas avaliações. Os que ficarem fora das cotas mais valorizadas sentir-se-ão naturalmente discriminados iniciando-se assim, não só, um processo de desmotivação, como de corrosão das relações em ambiente de trabalho. Inevitavelmente, os resultados não poderão corresponder, no futuro, àquilo que aquele director pretendia e que todos, enquanto cidadãos, desejamos e pretendemos para um serviço público de qualidade.
Num segundo exemplo, o actual quadro legal representa também uma clara ofensiva à valorização pessoal e profissional dos trabalhadores. Para efeitos de progressão na posição remuneratória, o investimento do trabalhador que, a exemplo, opta por fazer estudos pós-graduados ou valorizar-se com formação profissional constante é nulo, uma vez que tudo gira em torno da avaliação que o responsável faça do desempenho profissional do trabalhador. Poder-se-á argumentar que um mestrado ou uma pós-graduação servirão para que o trabalhador incremente melhores resultados ao seu desempenho profissional mas, face à esquematização burocrática e à discricionariedade subjacente aos processos de avaliação, valerá o esforço financeiro, pessoal e familiar decorrente dessa “valorização”?
Realisticamente, cabe a todos nós, trabalhadores da administração pública, movimento sindical e cidadãos, insurgirmo-nos contra todo este processo que não só se revela falacioso como instiga à degradação efectiva do sector público. Este quadro legal, não só visa limitar os vencimentos dos trabalhadores, como no imediato já nos começamos a aperceber, como introduz níveis de precarização do trabalho na Administração Pública e Local que apontam a breve trecho para despedimentos e para um clima de medo e degradação nos serviços públicos. Nós, enquanto sindicato mais representativo dos trabalhadores do maior município do País, continuaremos a lutar e a apelar a todos os nossos associados que estejam connosco nesta luta que, objectivamente, visa revogar este complexo e nefasto quadro legal que aponta à destruição do sector público nacional minando-o de dentro para fora. É preciso não esquecer que este quadro legal é o corolário de uma ofensiva constante vinda do poder político, repartido entre PS, PSD e CDS/PP, apontando, no futuro, à legitimação de medidas ainda mais gravosas contra os trabalhadores do sector público. A nós, resta-nos continuar a denunciá-lo e combatê-lo." FB
O presente texto será publicado na edição nº 134 do jornal do Sindicato dos Trabalhadores do Município de Lisboa, "O Trabalhador da CML".

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Life without internet


Ainda são possíveis momentos unplugged – independentemente dos wireless - nas nossas vidas. Em férias, sobretudo quando a lonjura nos desprende de casa e a vida se faz de calmaria, descoberta e lazer pleno, a civilização (ou aquilo que entendemos que isso seja ou possa ser) pode muito bem ser dispensada. Foi o que me fez sentir a insularidade de uma viagem de férias, onde na aparência, tudo nos parece um lugar distante, como se só existíssemos nós, os nossos e as ondas do mar.

O mundo até poderia ter acabado. A televisão do quarto de hotel nem sequer funcionava em perfeitas condições, logo, foi dispensável… a não ser que jogasse o Benfica! Confesso: não resisti e conectei-me para saber se nos bateríamos vitoriosos em Guimarães e em Poltava. Mas, em férias, e num local onde nem sequer chegam jornais, tudo o resto se tornou dispensável. Telemóvel desligado e apenas dois ou três contactos com casa para saber se tudo ia correndo pelo melhor. O que interessa é amar e desfrutar. Nada mais.

Mas, que jeito dá um ar condicionado num país tropical. E um frigorifico de mini-bar. E um telefone de recepção de hotel para chamar um táxi que nos leve a qualquer lugar fantástico. Não podemos viver sem isso, ou já não sabemos porque estamos impregnados de conforto por dentro e por fora. Ali está um computador com ligação à internet. É inevitável! Mas resisto; para quê corromper minutos de paz a ler mensagens de e-mail ou facebook dos amigos. Haverá tempo para tudo isso ao regressar. E blogues, e teclados de computador tilintando… Nem pensar. Resisti!

Doces férias, doces tempos. Ó gloriosa solidão (ou quase) de civilização na sombra dos dias.

Foto: FB

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Cunhal por Saramago

Contra o hábito, hoje não sou eu que escrevo aqui. O texto que se segue é de José Saramago e foi re-publicado, com algumas nuances inéditas, hoje (a sua versão original surgiu na revista Pública em 2003, ainda Álvaro Cunhal vivia), no DN. Para ler e recordar. Sempre...

ÁLVARO CUNHAL

Não foi o santo que alguns louvavam nem o demónio que outros aborreciam, foi, ainda que não simplesmente, um homem. Chamou-se Álvaro Cunhal e o seu nome foi, durante anos, para muitos portugueses, sinónimo de uma certa esperança. Encarnou convicções a que guardou inabalável fidelidade, foi testemunha e agente dos tempos em que elas prosperaram, assistiu ao declínio dos conceitos, à dissolução dos juízos, à perversão das práticas. As memórias pessoais que se recusou a escrever talvez nos ajudassem a compreender melhor os fundamentos da raquítica árvore a cuja sombra se recolhem hoje os portugueses a ingerir os palavrosos farnéis com que julgam alimentar o espírito. Não leremos as memórias de Álvaro Cunhal e com essa falta teremos de nos conformar. E também não leremos o que, olhando desde este tempo em que estamos o tempo que passou, seria provavelmente o mais instrutivo de todos os documentos que poderiam sair da sua inteligência e das suas finas mãos de artista: uma reflexão sobre a grandeza e decadência dos impérios, incluindo aqueles que construímos dentro de nós próprios, essas armações de ideias que nos mantêm o corpo levantado e que todos os dias nos pedem contas, mesmo quando nos negamos a prestá-las. Como se tivesse fechado uma porta e aberto outra, o ideólogo tornou-se autor de romances, o dirigente político retirado passou a guardar silêncio sobre os destinos possíveis e prováveis do partido de que havia sido, por muitos anos, contínua e quase única referência. Quer no plano nacional quer no plano internacional, não duvido de que tenham sido de amargura as horas que Álvaro Cunhal viveu ainda. Não foi o único, e ele o sabia. Algumas vezes o militante que sou não esteve de acordo com o secretário-geral que ele era, e disse-lho. A esta distância, porém, já tudo parece esfumar-se, até as razões com que, sem resultados que se vissem, nos pretendíamos convencer um ao outro. O mundo seguiu o seu caminho e deixou-nos para trás. Envelhecer é não ser preciso. Ainda precisávamos de Cunhal quando ele se retirou. Agora é demasiado tarde. O que não conseguimos é iludir esta espécie de sentimento de orfandade que nos toma quando nele pensamos. Quando nele penso. E compreendo, garanto que compreendo, o que um dia Graham Green disse a Eduardo Lourenço: "O meu sonho, no que toca a Portugal, seria conhecer Álvaro Cunhal." O grande escritor britânico deu voz ao que tantos sentiam. Entende-se que lhe sintamos a falta.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

A Coligação de António Costa

Ao reflectir sobre o cenário eleitoral em torno de Lisboa, e sobretudo após ter analisado os nomes que António Costa tem captado para a sua trincheira, assalta-me o medo de voltar a ver, de novo, a minha cidade tomada por santanistas e santanetes. Na verdade, e independentemente da acção do PS enquanto governo, a única solução para evitar que o poder na autarquia lisboeta volte, mais uma vez, às mãos de Santana Lopes e seus pares perfilar-se-ia numa ampla coligação de esquerda, envolvendo o PCP e o BE. Sem rodeios, e presumindo que o mais importante de tudo é a cidade e, consequentemente, os lisboetas, tal coligação apresentava-se como um imperativo.
Infelizmente, e conforme se pode ler nos jornais, a presumível coligação de esquerda que parece ter estado na agenda de António Costa tornou-se inviável esta semana. Não sei em que termos o aparelho lisboeta do PS colocou as pedras no tabuleiro mas, após quase dois anos de mandato, presumo que talvez assista alguma razão à esquerda que recusou o acordo. Independentemente das candidaturas de Ruben de Carvalho (CDU) e Luís Fazenda (BE) estarem no terreno, creio que o medo do “cataclismo” santanista seria só por si uma forte razão para este avanço em bloco das forças de esquerda que, como se sabe, representam a maior tendência eleitoral na capital. Porém, Costa e o PS têm tido posições pouco consentâneas com a defesa de interesses inalienáveis a uma verdadeira política de esquerda para a capital. E tudo isso reflectiu-se agora, independentemente das estratégias eleitorais dos partidos perante uma calendarização de brutal exigência.
De facto, ao promover intenções claras de privatização de serviços nevrálgicos da autarquia - como a recolha de lixo ou, agora, a manutenção de espaços verdes -, ao ter sido impelido pelo movimento sindical e pela luta dos trabalhadores a recuar quanto à intenção de despedir centenas de falsos recibos verdes, ao tomar a posição que tomou na “guerra” dos contentores de Alcântara, ao ignorar a degradação constante da vida dos cidadãos na cidade por via da falta de uma visão estratégica com efeitos no terreno (apesar de uma série de processos delineados como a Carta Estratégica, o simplis ou o “pagamento a tempo e horas”), António Costa mostrou, em dois anos de mandato, muito daquilo que o separa de uma efectiva solução política de esquerda. Uma coligação agora, e neste cenário, soaria a utilitarismo puro e simples, ainda mais quando provavelmente se pretendesse incluir José Sá Fernandes ou Helena Roseta como representantes “independentes” dessa ampla coligação à esquerda.
Após o desenlace anunciado à partida, a António Costa restará ir a votos acompanhado de Sá Fernandes e, com toda a probabilidade, Helena Roseta. Sá Fernandes significará uma incógnita em termos eleitorais uma vez que, aprofundando a análise em torno do que tem sido o seu mandato enquanto vereador, poderá retirar mais votos do que aqueles que conseguirá captar. Além do mais, Santana Lopes será o primeiro a apontar Sá Fernandes como um dos principais responsáveis pelo descalabro da sua gestão enquanto edil da cidade. Em sequência do embargo ao túnel do Marquês de Pombal, a personagem de Sá Fernandes fornece a Santana uma arma de peso na campanha; é preciso não esquecer que se está perante um político hábil no uso e abuso de argumentos de vitimização, servindo estes tanto para as lutas internas do PSD como para as externas, conforme o seu percurso tem demonstrado.
Ao tentar Helena Roseta como aliada, Costa tenta estancar mais fragmentação à esquerda. Diz-se que as relações entre os dois não são propriamente uma lua-de-mel, sobretudo porque a ex-deputada do PS tende a fazer-se valer da eventual mais-valia que representam os votos presidenciais de Manuel Alegre nas Presidenciais de 2006, logo pretendendo assumir um maior protagonismo no futuro executivo camarário. Na verdade, esta ambição poderá não parecer assim tão disparatada uma vez que o resultado de Roseta nas “intercalares” de 2007 foi relevantemente expressivo (superior mesmo a PCP e BE). Mas, após tanta inconsequência ao longo do mandato, será caso para questionar o que valerá actualmente Helena Roseta na escolha dos eleitores lisboetas.
Perante tudo isto, eu lamento! Lamento que a tão ansiada coligação de esquerda que outrora foi, apesar de tudo, uma experiência altamente positiva para Lisboa (com certeza a última até ao momento!) não seja possível de reeditar. Lamento que António Costa não represente uma solução de consenso à esquerda e por isso se veja reduzido a uma coligação com “independentes”, seja lá qual for o significado político da expressão (pelo menos em Portugal). Assim, quem fica a ganhar é aquilo que ultrapassando o epíteto da direita representa o pior lado da política portuguesa. Por tudo isto, eu lamento, e só me ocorrem as palavras do meu malogrado amigo Gracindo Neves que não se cansava de dizer “este povo não tem memória, só uma vaga ideia”.

terça-feira, 30 de junho de 2009

A Morte a Três



As vedetas morrem a três? De quando em vez acontece, como se uma chamasse a outra e a outra. Foi assim com Hendrix, Joplin e Morrison, e agora com Fawcett, Jackson e Bausch. Claro que todo este paralelismo poderá parecer absurdo. O primeiro trio vinha do mundo do rock e todos andavam nos vinte, trinta anos, para além de pouco tempo antes ter morrido também Brian Jones, o que somado ao mítico american trio poderia ter formado um quarteto . Agora, este trio que desaparece na velocidade estonteante de cinco dias (e não de cerca de um ano), pouco teria de comum entre si, à excepção do mediatismo que cada um reuniu em torno das suas personalidades e, em certa medida, das suas obras. Com honrosas e diferentes amplitudes, esclareça-se.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Estórias de Ricos

E certo dia uns quantos ricos zangaram-se… Zangaram-se de tal forma que logo a adormecida Sra. D. Justiça foi convidada a acordar.
O Comendador Joe, jogador e homem das artes apesar do estranho sotaque, afortunado dos tempos em que ainda havia filões a dar ouro, não perdoou a cinco magnânimes regedores de uma empresa de agiotagem - usualmente designada banco -, e sem piedade nem complacência, como se sentimentos desses fossem catarses de católicos ascetas, despertou a sonolenta Sra. D. Justiça, tão laica e balanceada quando engalanada chega e caminha para a verdade.
Estimulada pelo estremeção de tão varonil dedo acusador, logo bradou Assim não, meus senhores. E acusou no pressuposto de palavrões conjugados, do qual resultam conceitos como manipulação de mercado, falsificação da contabilidade, burla qualificada… mas, no essencial e para o vulgo e comum mortal entender, algo que se resume a qualquer coisa como vinte e quatro milhões de euros – o que na moedinha pobretana do antigamente dá uns doze milhões de contos, mais tostão menos tostão – distribuídos pelos cinco malandrins, sabe-se lá em que quinhões.
Navegando por estas águas turvas do mundo de agiotagem e semelhantes malfeitorias, lá vem ao banzé o badalado offshore das Ilhas Caimão, espécie de paraíso na terra para banhos de capital. Julga-se que era aí que se debruava a tramóia… mas por agora é só julgar, pois até já soam burburinhos maldizentes que acham que a senhora pode voltar a adormecer. Até porque estas coisas de ricos são tudo invejas e, bem visto o panorama, isto é gente que resolve as coisas como gentlemenes.
Se eu fosse o narrador desta história até ao momento em que se lê fim, dava-se um salto às Caimão ou ali à Suiça, os cinco levantavam o pilim, devolviam-no e esquecia-se isto do deve e da manipulação e da burla!... Era uma poupança de trabalhos e gastos. E o Comendador Joe, se não gostar, vá passear ao museu ou jogar na bolsa que a Sra. D. Justiça volta já para a caminha.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Notas sobre as Europeias (II)


Reconheço que parte do meu último texto sobre as Europeias se tornou praticamente obsoleto logo no dia a seguir. Na verdade, e apesar da minha formação académica enfermar em tentações cientificas muitas vezes arriscadas, como o recurso a sondagens para apontar resultados previsíveis, não tenho por hábito guiar-me por este tipo de estudos (venham eles donde vierem) para aferir os pulsares da política, até porque não me parece que esse tipo de exercícios matemáticos aplicados à vontade ou à escolha das pessoas sejam capazes de produzir resultados estritamente científicos. Para não alimentar polémicas, até sou capaz de nutrir respeito por quem os persegue, mas, permitam-me que me mantenha céptico, independentemente da minha admiração por quem não desiste da objectividade dos números atingidos enquanto resultado de exigências metodológicas honestas. De facto, as sondagens pré-eleitorais relativas ao acto do passado domingo revelaram-se de uma assertividade desastrosa. Nada de inédito, é certo, mas desta vez, talvez pelo desenlace final, poucos se escusaram em apontar as insuficiências das previsões, colocando em causa desde o método à objectividade com que são trabalhadas as amostragens e consequentemente os resultados por elas produzidos. Em suma, eu próprio caí na armadilha das sondagens e com base nelas adiantei uma derrota do PSD e do seu candidato, independentemente do empate técnico que se apontava. Não foi assim. O PSD ganhou as eleições e Paulo Rangel, um candidato aparentemente fraco ganhou margem para que fazedores de opinião o catapultem para voos nunca dantes imaginados.

O álibi da abstenção foi bradado pelos técnicos de sondagens como causa primeira para o falhanço. Mas é esse mesmo álibi que parece servir ao actual partido de poder para desvalorizar a votação histórica conseguida pelos dois partidos à esquerda do PS. A lógica parece assentar num acto eleitoral que mobilizou maioritariamente quem quis votar contra o governo. Até parece aceitável mas, ao vermos o Bloco de Esquerda e o PCP a ultrapassarem juntos a barreira dos 20% dos votos parece legítimo e politicamente honesto tirar ilações. É que para além do voto de protesto, é premente equacionar que há uma franja cada vez maior de eleitores a não se reconhecerem na política de sempre, simbolizada em PS, PSD e CDS.

A ultrapassagem em número de votos e mandatos pelo BE ao PCP (apesar da margem ser mínima) é evidentemente um facto inédito no panorama político nacional, uma vez que nunca o PCP se viu ultrapassado à esquerda. Apesar do excelente resultado da CDU, há naturalmente, para o PCP, um incómodo compreensível nesta nova arrumação do quadro partidário português. A grande dúvida é se o resultado eleitoral do BE é consistente noutro cenário eleitoral. Independentemente do elevadíssimo valor da abstenção, crê-se que o crescimento eleitoral do BE se deveu, sobretudo, a uma canalização de votos de simpatizantes do PS que aproveitaram a eleição em causa para mostrar o seu desagrado com a actuação governativa. A ténue aproximação do militante e deputado socialista Manuel Alegre ao partido de Francisco Louçã poderá também ter tido algum impacto na votação obtida uma vez que os “alegristas” não se cansam de valorizar o resultado conseguido pelo poeta-deputado nas últimas presidenciais em oposição ao seu próprio partido. E o certo é que este resultado do BE tem forçosamente uma ligação clara com o paupérrimo resultado obtido pelo PS. Por tudo isto, será extremamente interessante verificar o fenómeno BE nas legislativas e já agora saber como se comportará o eleitorado consistente do PCP em oposição ao eleitorado mais volátil do BE num cenário com uma previsivel menor abstenção e com outras e mais relevantes dinâmicas em causa.

sábado, 6 de junho de 2009

Notas sobre as Europeias

O acto eleitoral:
Em vésperas de eleições para o Parlamento Europeu pulsa-se mais um acto eleitoral marcado pela abstenção, à semelhança do que se passa noutros Estados membros que já iniciaram as votações. Poderão apontar-se inúmeras variáveis que contribuem para o desinteresse dos europeus neste acto eleitoral mas torna-se incontornável que um dos vectores que mais empurra os eleitores para a abstenção é o próprio conceito de Europa estruturado por uma burocracia institucional situada entre Bruxelas e Estrasburgo. De facto, a Europa enquanto instituição política é uma abstracção aos olhos do cidadão comum, seja aqui, seja em França, Espanha ou Alemanha. A face elegível pelo cidadão desta abstracção é o Parlamento Europeu, o órgão constituído pelas famílias políticas transnacionais geradas das tendências nacionais dos Estados membros da União que, teoricamente, representam as nossas vontades na tomada de decisões. Teoricamente, volto a sublinhar, porque aquilo que de facto ali se representa é toda uma rede tecnocrática amorfa e distante dos cidadãos que contribui para que a Europa enquanto conceito se encontre numa crise profunda e o eurocepticismo ganhe cada vez mais terreno em todos os Estados membros. Quando uma nomenclatura burocrática afasta ou pressiona os cidadãos nas decisões mais importantes (veja-se todo o historial da Constituição Europeia ou da sua versão soft chamada Tratado de Lisboa), o pronuncio acerca do modelo institucional desta Europa só pode ser negativo.

Escolhas:
A poucas horas de se começar a votar em Portugal, e fazendo fé nas sondagens, o partido do governo arrisca-se mesmo a vencer as eleições. Ao contrário da tendência tipo nos outros países da Europa, nem a crise e as múltiplas conflitualidades com a governação, nem mesmo a degradação institucional que paira um pouco por toda a parte parecem ser suficientes para levarem o eleitorado que amanhã se mobilize a derrotar o PS. Não deixa de ser preocupante para o principal partido da oposição, e também para o País, que a maioria do eleitorado não reconheça outras soluções para lá da que está no poder. Mesmo num cenário de empate técnico, o PSD é um vencido anunciado porque todas as condições conjunturais deveriam proporcionar-lhe uma vitória esmagadora e não um empate técnico. O PS de Sócrates até pode não ganhar nos números, mas anuncia-se que resista, o que só não é surpreendente porque o PSD de Ferreira Leite não encontra engenho nem rumo para se apresentar ao eleitorado, conforme demonstrou a campanha eleitoral de Paulo Rangel, feita entre clubes de elite e umas medrosas arruadas. Na verdade, até nem se pode dizer que o PS não tenha ajudado ao escolher o pior cabeça de lista possível: Vital Moreira foi mesmo muito mau e produziu embaraços suficientes para dar folga aos adversários. Mas, nem assim; e ainda há quem pense e propague que Paulo Rangel foi uma “excelente” escolha!

sexta-feira, 15 de maio de 2009

O Primo da China

Ao ver a capa do Expresso deste fim de semana só posso sentir-me estupefacto. Numa primeira impressão, e abstraindo-me da garrafal manchete, pensei tratar-se de um cartaz de um filme de kung-fu, daqueles que na infância me prendiam o olhar na fachada do Éden. Num segundo e momentâneo visionamento pensei que Tarantino aprontara das suas e, com Cannes no horizonte, o maior semanário português se rendera a nova incursão no zen sanguinário do cineasta americano. Afinal, e porque à terceira é de vez, de cinefília há aqui muito, ou talvez nada. Trata-se de uma foto do primo de José Sócrates, o tal que andou metido nos estranhos negócios do outlet de Alcochete e que agora anda por terras da China a treinar artes marciais 8 horas por dia, segundo o jornal. Assalta-me uma dúvida: em quem irá desancar o primo de Sócrates com tanto adestramento?

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Contra-ciclo

Em tempos de crise, um novo jornal pago chegou hoje às bancas. Numa altura em que a tendência internacional é a redução humana das redacções e até mesmo o reequacionar da continuidade de um formato como o jornal em papel (escrevi algures sobre isso num texto já aqui publicado e na decorrencia da revolução que têm sofrido muitos jornais norte-americanos) a chegada do «I» parece surgir em completo contra-ciclo. Eis algumas inquietações:
Não querendo ser injusto na avaliação deste primeiro número chegado hoje aos escaparates, tudo me leva a crer que o «I», ao contrário do que escreve o editor do jornal (“tudo isto aqui é novo”), não traz nada de inédito ao panorama da imprensa escrita, à excepção de disponibilizar em português peças do «New York Times», incluindo crónicas de alguns dos seus colunistas como Thomas L. Friedman ou Paul Krugman. Nada que, a exemplo, a «Visão» não faça recorrentemente com a «Time».
O jornal agrafado em jeito de revista faz recordar o gorado semanário «Já» de Miguel Portas. A arrumação das páginas lembra as mudanças no «Diário de Noticias» em inícios da década, cheio de sínteses e caixinhas que servem mais para dispersar do que para cativar, apesar de (e citando o argumento com que se implementou esse modelo no DN) ser esta a fórmula que melhor corresponde aos anseios do leitor moderno.
Entre algumas pobrezas que se vão detectando página a página - como falta de contexto de uma série de troca de frases soltas entre David Cameron e Gordon Brown na rubrica internacional («Radar Mundo») ou de uma síntese dos dois anos de governação Sarkozy em três caixas que apenas ali parecem estar a fechar a página (não obstante a participação de um "tal" de Vasco Rato numa das colunas a dizer «cedendo à pressão dos protestos» - vide página 16), - destaco aquilo que me parece um pouco abusivo da parte de um director de jornal que julga, na sequência dos artigos de opinião publicados e a publicar no «I», que “a opinião orienta os raciocínios”. O verbo orientar não parecerá pernicioso e denunciador de excessiva presunção quando aplicado a colunas de opinião publicadas na imprensa?
Em sintese, o «I» de informação que agora chegou tem a variável on line que prometo visitar para procurar o prometido “novo” mundo da informação. Por ora, ficarei por aí; o papel, mesmo que em provável contra-ciclo, não convenceu.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Vasco Granja

A televisão era ainda a preto e branco. Não havia Canal Panda nem vhs e a Disney era algo a que só acedia aos domingos de manhã quando o meu pai me levava ao malogrado cinema do Caleidoscópio.
Em casa, desenhos animados era sinónimo de Vasco Granja: os toons do período dourado da Warner, o experimentalismo vindo do leste quando a Europa ainda era dual, as animações com plasticina que me inspiravam desajeitadas obras a que sonhava dar vida...
O simpático senhor que animou tantas horas da minha infância morreu ontem, aos 83 anos. Um grande bem haja a Vasco Granja, um dos nomes mais inesquecíveis da minha geração.

Sobre o percurso do grande VASCO GRANJA

sábado, 2 de maio de 2009

Desgraça de Política

O impropério e o insulto podem não ser reacções legítimas numa democracia mas acontecem com imensa facilidade quando a lógica das massas se impõe. É assim no futebol, é assim numa manifestação ou num protesto; e manda a democracia que o valor da tolerância acabe por relevar alguns dos excessos. De facto, o protesto não encontra muitas vezes barreiras de linguagem no anonimato da multidão que age e reage dentro de uma espiral de contágio sempre mais emotiva que racional. Qualquer agente político em democracia tem o dever de entender isso enquanto inevitabilidade da dimensão pública.
Há umas semanas atrás, o primeiro-ministro queixava-se que as manifestações organizadas pela CGTP persistem no insulto pessoal contra a sua pessoa. Sócrates, que gosta de se mostrar inflexível nos seus propósitos e desde sempre tem desvalorizado os sinais da rua (num autismo bem típico das maiorias parlamentares absolutas), não se coibiu a criticar os excessos de linguagem e aproveitou para relançar assim o “marketing” da vitimização que, como se sabe, potencia simpatias sobre a “vítima” e combate o “agressor”.
Quando o verbo atravessa a fronteira e se torna agressão, mesmo que tal não supere o empurrão ou o repelão, a situação extravasa para um campo que não pode ser tido como aceitável. O que sucedeu ontem a Vital Moreira no Martim Moniz, durante a manifestação do 1º de Maio da Intersindical é, de facto, lamentável porque nada pode legitimar aquele tipo de reacção por parte de alguns cidadãos, sobretudo numa manifestação organizada que é também uma festa de liberdade e de democracia.
Posto isto, convém esclarecer que o sucedido ao candidato independente do Partido Socialista às Europeias foi apenas, e felizmente, resultado da actuação de uma meia dúzia de manifestantes e não do grosso da coluna. Porém, depressa se levantaram os clamores de ignomínia por parte do PS e dos comissários políticos do governo espalhados pelas redacções dos jornais e das televisões que se apressaram a visar no campo das responsabilidades a CGTP-IN e o Partido Comunista Português.
Sem apelo nem agravo, quem olha hoje a imprensa do dia verifica que a manifestação dos trabalhadores no 1º de Maio se tornou numa exteriorização da intolerância política representada numa esquerda de raiz leninista, estalinista, guevarista, e etc., etc., etc. Em suma, quem atentamente assiste a tudo isto com base nos media e quer preservar alguma seriedade intelectual e política só pode constatar que Portugal assiste a uma vaga de desinformação que só pode servir, entre tantas coisas, o tal “marketing” de vitimização que com certeza irá surgir com enorme frequência ao longo deste ano eleitoral.
Durante a noite de ontem, e depois de ter assistido à conferência de imprensa de Vitalino Canas do PS tive mais uma vez a certeza que o país está e estará no ground zero da luta política enquanto a alarvidade dos medíocres continuar a dominar a acção política. Na verdade, nada disto surpreende se lembrarmos a ligeireza insultuosa com que alguns combatem publicamente os seus adversários políticos – basta lembrar como um quadro destacado do PS atacou, há uns dias, um histórico do seu próprio partido, recorrendo a recursos estilísticos que culminaram no julgamento de carácter para assinalar discordâncias ideológicas.
O que parece mais grave nesta situação é que a insensatez e a falta de civismo democrático de uma tão diminuta massa anónima acabaram por ganhar o lugar de protagonistas no Dia do Trabalhador. Resultado: o discurso de Carvalho da Silva foi praticamente silenciado dos blocos informativos e os milhares de trabalhadores e desempregados que encheram as ruas tornaram-se desordeiros intolerantes. Na retina ficará apenas um Vital Moreira hostilizado por manifestantes instigados em ódio destilado pelo dirigismo sindical e pelo PCP, segundo a versão oficial dos factos. Imagine-se se em Portugal se passasse, para não ir mais longe, o que sucede regularmente nas grandes manifestações em França ou na Alemanha. Partiriamos para a ilegalização do PCP e de uns quantos sindicatos?

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Cenas da Luta de Poder e de Classes

Corria o ano de 1888 quando August Strindberg, autor sueco, filho de um aristocrata falido e de uma empregada doméstica, escreveu a mais famosa das suas obras, «Menina Júlia». No prefácio à peça, Strindberg salientava:
«Deixei-me seduzir por um assunto por assim dizer estranho às lutas partidárias de hoje, visto que o problema da grandeza ou decadência social, da superioridade e da inferioridade, do bem e do mal, do homem e da mulher, tem e terá sempre um interesse duradouro»
Nesse mesmo ano, o Brasil abolia a escravatura e a Áustria via nascer o Partido Social Democrata dos Trabalhadores. Dois exemplos em resposta a relações de poder e de classe: no primeiro caso, a superação da mais abjecta forma de exercício de poder de uns sobre outros homens; noutra, o erigir de novas relações de poder e representatividade através da emancipação político-partidária de uma classe. Ambos os acontecimentos são meras curiosidades e, observando hoje uma peça como «Menina Júlia», apercebemo-nos como o autor tinha absoluta razão quando destacava o interesse duradouro dos temas aflorados, até porque o mote da jovem aristocrata na vertigem de descer ao mundo da criadagem até se ver bloqueada na sua própria teia quando sente que já é impossível recuperar o poder e o controlo sobre o todo, nada mais pode ser que «um tema da vida». Porém, simultaneamente, Strindberg estaria longe de entender quanto o rumo dos tempos faria da peça um clássico intemporal sobre uma época e sobre conflitualidades futuras que colocariam cara a cara homens em constante oscilação de posição de poder. Basta-nos relembrar quantas vítimas passaram a carrascos e vice-versa ao longo desse longo século XX para entender que o mundo mudara e transportara definitivamente as intemporalidades da vida doméstica para o plano distendido do social e do político.
Neste sentido, há nesta obra tão pulsante de vida a inevitabilidade de um olhar politológico que vê no triângulo “Menina Júlia-Criado-Cozinheira” uma metáfora sobre relações de poder e de classe que se revêem nas oscilações constantes de posição que os personagens vão ocupando ao longo da peça. No início, tudo está nos devidos sítios, como a metódica arrumação de uma sala de visitas. A menina, a filha do patrão que é conde, manda e os criados obedecem, até na satisfação dos mais ridículos dos caprichos, sem que se reconheça a vontade de questionar. Mas, depois vem o humano, a insinuação de quem serve mas ambiciona deixar de servir (o criado) e no ímpeto da carne e do desejo, no anseio pela experiência e pela transgressão, o poder desfaz-se. Há o ruído da turba, e a jovem mulher (a menina Júlia), agravada pela sua própria condição de género, como qualquer criatura em desgraça, vira escória, perde o poder e de agente manipulador transforma-se em agente manipulado, capaz de ser humilhada pela criatura mais submissa à sua própria condição de berço (a cozinheira). A tragédia traçada no horizonte de Júlia vislumbra-se como a libertação do criado à sua autonomia de construção de uma história; mas acaba por ruir quando, invisível, um poder maior, quase divino, se abate sobre ele (o do conde, a verdadeira emanação do Poder, sempre fora de cena mas tantas vezes presente como ente supremo, seja pelas botas de montar seja pelo toque estridente da campainha, segundos antes do cair do pano) e o recoloca na condição originária, ou seja, na daquele que nasceu para servir.
A encenação de Rui Mendes, com Beatriz Batarda, Albano Jerónimo e Isabel Abreu, agora em cena no D. Maria II, pode não ser genial nem sublime, mas tem a grande virtude de deixar fluir o texto, dignificando uma peça marcante na história do teatro ocidental.

sábado, 25 de abril de 2009

Das Portas que Abril Abriu


















De tudo o que Abril abriu

ainda pouco se disse

um menino que sorriu

uma porta que se abrisse

um fruto que se expandiu

um pão que se repartisse

um capitão que seguiu

o que a história lhe predisse

e entre vinhas sobredos

vales socalcos searas

serras atalhos veredas

lezírias e praias claras

um povo que levantava

sobre um rio de pobreza

a bandeira em que ondulava

a sua própria grandeza!

De tudo o que Abril abriu

ainda pouco se disse

e só nos faltava agora

que este Abril não se cumprisse.

Excerto de As Portas Que Abril Abriu, de José Carlos Ary dos Santos

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Memória de 24 de Abril

Vararam-te no corpo e não na força
e não importa o nome de quem eras
naquela tarde foste apenas corça
indefesa morrendo às mãos das feras.

Mas feras é demais. Apenas hienas
tão putridas tão fetidas tãos cães
que na sombra farejam as algemas
do nome agora morto que tu tens.
excerto de Soneto Escrito na Morte de Todos os Antifascistas Assassinado pela PIDE, de José Carlos Ary dos Santos

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Ballard e Chambers


As nossas vidas estão sujeitas ao
Império desses dois grandes
laitmotives
do século XX:
o sexo e a paranóia.
J. G. Ballard

Fazer o obituário simultâneo de um escritor e de uma estrela do cinema pornográfico pode parecer um pouco estranho. Porém, na minha memória imediata, J.G. Ballard e Marilyn Chambers, recentemente falecidos, surgem efectivamente ligados a um nome: David Cronenberg. Mas, bem vistas as coisas, ambos pertencem a um único universo, o da tardo-modernidade num século em que a ciência tida como modelo absoluto de eficácia social e a pornografia tão “acentuadamente política” (como a considerou Ballard) se confundiram.
Mas, recuemos a 1972, o ano em que a pornografia saltou dos red light districts para o mainstream e fez nascer duas estrelas improváveis, Linda Lovelace (protagonista de «Garganta Funda») e Marilyn Chambers (a “all american girl” de «Atrás da Porta Verde»). O impacto social e moral de «Garganta Funda» (eficazmente retratado no documentário «Inside Deep Throat») foi paralelamente complementado pelo mais elaborado e artístico filme dos Irmãos Mitchell, protagonizado por Marilyn Chambers (se não estou em erro, o único filme pornográfico a ter direito de exibição na Cinemateca Portuguesa).
De facto, ao contrário do padrão regular do cinema pornográfico, «Atrás da Porta Verde» revela preceitos estéticos que, muito embora discutíveis, são completamente inéditos no género. Como um crítico de cinema mainstream da época referia, «Behind the Green Door» era o filme que significava «a vanguarda de uma nova linguagem estética no cinema». À boleia deste impacto, Marilyn Chambers, que até já havia contracenado com Barbara Streisand num filme de Herbert Ross em 1970, torna-se um ícone para lá do género mas, consequentemente, também uma vítima desses anos fugazes da popularidade e aceitação do cinema pornográfico.
O ponto mais mainstream da carreira de Chambers surge em 1977, quando o mais ballardiano dos cineastas, o canadiano David Cronenberg a dirige no inquietante «Rabid», exercício de horror onde o desejo sexual, carnal e visceral conduz ao apocalipse (algo que já estava subjacente na obra anterior de Cronenberg, «Os Parasitas da Morte», e que encontrará o seu auge na adaptação do «Crash» de Ballard ao cinema). Para Chambers, «Rabid» era o seu primeiro trabalho enquanto protagonista num filme não pornográfico e consta que a actriz sustentava o sonho de fechar a página sobre o passado hardcore. Mas, como sempre no meio rated-X, o destino estava traçado e, conforme chegou a assumir, o passado nunca a abandonou, ainda mais quando a contra-revolução nos costumes se instala em Washington, com Ronald Reagan, no início dos anos 80.
Na introdução que o próprio escreveu para o seu livro «Crash» (1973), J. G. Ballard refere: «A pornografia é a forma de ficção mais acentuadamente política, dado que demonstra como nos usamos e exploramos uns aos outros da maneira mais impiedosa». Escritor britânico conectado com a new wave, ficou conhecido pelas suas obras no domínio da ficção científica, mas será precisamente «Crash», a sua obra mais pornográfica e apocalíptica, que o torna um nome incontornável na literatura do século XX. Morreu de cancro na próstata aos 78 anos tendo atingido o auge da popularidade quando Steven Spielberg adaptou ao cinema as suas memórias de guerra em «Império do Sol». Porém, o cineasta que mais jus fez à marca do escritor britânico foi precisamente David Cronenberg, sobretudo quando transporta «Crash» para a tela.
O «Crash» de Cronenberg é tão fiel a J.G. Ballard que promove a linguagem da pornografia a um segundo fôlego no cinema mainstream mas, desta vez, longe do impacto social e moral que o porno chic havia conseguido nos anos 70 (até porque o filme foi injustamente ostracizado). O que eventualmente a adaptação dessa obra maior da literatura conseguiu foi introduzir uma abordagem estética que, não sendo explicitamente pictórica, conduz a narrativa na lógica niilista que subjaze ao filme pornográfico. Tudo ao serviço de um realismo apocalíptico que se serve do automóvel «não só como imagem sexual, mas também como metáfora global da vida humana na sociedade dos nossos dias», usando as palavras do próprio Ballard.
O percurso de vida de Marilyn Chambers, a estrela porno que mais glam deu à indústria, poderia ser o drama de alguém que experimentou a adversidade da lógica impiedosa dos desejos que ligam a matéria sexual ao objecto, o qual, em última instância, é humano, conduzindo à aniquilação física e racional do indivíduo. Não faleceu, como Linda Lovelace, num acidente de automóvel - passível de ser encenado pelos personagens de Ballard enquanto ritual de satisfação sexual, num misto de chapa amolgada e carne -, nem renegou o seu papel de objecto de desejo na indústria do hard core como a companheira de geração, mas fez um percurso que culminou na solidão da autocaravana onde vivia e onde morreu por causas não apuradas. Pessoalmente, pouco poderia ter a ver com J.G. Ballard; seria mesmo uma improvável personagem dos seus livros porque o seu apocalipse terá sido efectivamente mais interior que exterior, mas não deixa de ser curioso como foram praticamente companheiros de morte.

sábado, 18 de abril de 2009

Europa Made in Portugal

Neste ano de crise, as eleições! A abrir, as europeias, depois as que verdadeiramente interessam porque isto de Europa é, no vernáculo partidário português, um sinónimo de sondagem à séria para o que se segue, ainda mais neste 2009 de tanta actividade. Em vésperas do primeiro debate a cinco na RTP 1 (programa «Prós e Contras») deixo um breve olhar sobre o tema.
Há dias, ainda antes de se saber as escolhas para cabeças de lista às Europeias pelo PSD e pelo CDS, um cronista da nossa praça (que, infelizmente, não recordo o nome) levantava a hipótese de termos PS, PSD, BE e CDS a optarem por cabeças de lista formados no PCP. O exercício revelava-se interessante e mordaz, colocando frente à resistente comunista Ilda Figueiredo, os nomes de Vital Moreira (candidato confirmado pelo PS), Miguel Portas (confirmadíssimo pelo BE), Zita Seabra (PSD) e Celeste Cardona (CDS).
De facto, desconheço se alguma vez Zita Seabra ou Celeste Cardona chegaram a ser equacionadas pelos seus actuais partidos, porém, as possibilidades de termos aqui um pleno de candidatos “europeus” formados no “anti-europeísmo” revelava-se com toda a certeza mais interessante do que aquilo que a realidade acabou por reservar. O PSD apontou a seta com o inenarrável Paulo Rangel; o CDS apostou num rapaz de mão do líder, deixando o histórico “europeu” Ribeiro e Castro em terra.
Hipoteticamente, o caso da aposta de Manuela Ferreira Leite e da sua direcção no actual líder da bancada só pode significar que o PSD anseia livrar-se de Rangel e Rangel anseia pela única possibilidade de alguma vez vencer uma eleição em que seja protagonista. Dentro de um leque de potenciais candidatos capazes de catapultar o partido para os desafios mais sérios que se avizinham, a actual direcção laranja aposta num candidato tão inócuo que, face à conjuntura, até Vital Moreira se arrisca a ser a escolha acertada de Sócrates e não a segunda versão da candidatura de Soares às presidenciais.
O que este leque de candidatos deixa no ar é que tanto o PS como o PSD se encontram completamente desinteressados deste acto eleitoral. À esquerda, PCP e BE apostam na continuidade do resultado minímo garantido; à direita, justificam-se as escolhas na solidão liderante de Paulo Portas que afasta outras soluções porventura mais competitivas. Em síntese, uma retumbante vitória anunciada da abstenção num dia que se quer de sol e calor!

sexta-feira, 17 de abril de 2009

segunda-feira, 30 de março de 2009

Maurice Jarre (1924-2009)

O deserto. As dunas batidas a vento. A caminhada insondável do viajante no dorso de um camelo.

É incontornável que perante esta imagem não nos ocorra a música de Maurice Jarre para um dos grandes épicos da história do cinema, «Lawrence of Arábia» de David Lean.
O compositor francês, autor de mais de uma centena e meia de bandas sonoras para cinema, faleceu ontem.

sábado, 28 de março de 2009

Uma Teoria da Conspiração


À hora que escrevo estas linhas, a imprensa nacional anuncia, por via de um exclusivo TVI, que Charles Smith (sócio da consultora Smith & Pedro, contratada no âmbito do licenciamento do Freeport de Alcochete) surge num dvd, em posse da polícia britânica, a garantir que José Sócrates é corrupto e terá recebido dinheiro, por via de um primo, para dar luz verde ao projecto do “outlet” de Alcochete. Na TVI, é possível assistir ao som real do alegado dvd, acompanhado por imagens desfocadas a preto e branco que visam recriar a situação, ilustrando-a e dando-lhe o dramatismo merecido. Em suma, um mimo de produção do canal que se orgulha de representar o melhor que se faz na ficção portuguesa.
Já ontem, por esta mesma hora, a notícia de abertura dos blocos informativos da SIC e da RTP destacavam o artigo de opinião assinado por Marinho Pinto, onde o bastonário da Ordem dos Advogados desmonta todo o processo conspirativo que visa envolver José Sócrates no “caso Freeport”. No seu estilo, tantas vezes apontado como demagógico e desbragado, Marinho Pinto expõe o modo como se construiu um processo de investigação que nasce de uma carta supostamente anónima, e que hoje se sabe ter sido escrita por um ex-deputado do CDS-PP, e acabou por envolver uma tríade composta por agentes da Polícia Judiciária (um deles condenado por violação do segredo de justiça), um jornalista intimamente ligado ao PSD e um ex-chefe de gabinete do antecessor do actual primeiro-ministro em São Bento.
Perante dois cenários como os expostos, quase apetece lembrar aquele personagem de Graham Greene que dizia «No nosso século, a realidade não é coisa que se enfrente». Na verdade, perante a crise profunda dos difíceis tempos deste século (que já não é o de Greene), talvez valha mais romancear a realidade, dar-lhe uma certa excitação e discorrer a um ritmo telenovelistico, doseado em capítulos onde tudo parece avançar no sentido do desfecho para que logo o episódio seguinte o negue, numa espiral dialéctica que só o engenho da cultura televisiva é capaz de criar (qual devir histórico qual quê!).
Olhando para este “caso Freeport”, recuperado dos baús no ano de (quase) todas as eleições, apetece-nos claramente desligar mas, o mais emotivo de tudo isto é que começamos a sentir que nada do que se está a passar aqui é real, logo é esse picante da ficção que nos fixa aos próximos episódios e nos permite extrapolar. A mim, que tantas vezes me sinto com pouca vontade de enfrentar a realidade deste tempo insano prende-me esta história que envolve numa intriga internacional o primeiro-ministro do meu País (Sócrates), uns consultores mercenários (da Smith & Pedro), uma família pouco recomendável (a de Sócrates), uns fulanos da oposição a Sócrates (numa coligação não decretada CDS-PP/PPD-PSD), polícias (Judiciária), justiça (Ministério Público) e muita comunicação social sedenta de acção.
Ora, perante tamanho leque de ingredientes, comecemos uma teoria da conspiração que nada mais é que a minha, na óptica de espectador desta realidade que só se enfrenta porque nos parece absoluta ficção. Mas antes, de modo a evitar interpretações funestas ou maldosas, gostaria de expor, do ponto nevrálgico do meu apartidarismo, o que penso de José Sócrates, eventual grande protagonista deste seriado. Depois, sem escamotear que pode haver fogo de onde saí fumo, avançar com os sublinhados que fazem deste caso o cenário ideal para uma teoria da conspiração.
Produto da escola de um aparelho partidário, Sócrates tem uma qualidade inegável que reside na habilidade com que doseia algum carisma com um optimismo por vezes irresistível, mesmo perante o maior dos cataclismos. Este optimismo estratégico que o faz iludir as crises perante as maiores adversidades é a antítese do miserável “discurso da tanga” que o antecedeu, num pathos, emocional quanto baste, que transporta habilmente intermitentes estados de graça ao longo de quatro anos de governação. Mesmo perante manifestações de professores e de trabalhadores do público e do privado a sacudirem as ruas com quase tanto ímpeto quanto nos tempos do PREC, mesmo perante esta conjuntura económica internacional negativa, sem paralelo nas últimas largas dezenas de anos, a fazer disparar o desemprego, o actual primeiro-ministro vai resistindo.
Não obstante qualquer factor mais drástico, Sócrates e o seu PS mantêm todas as condições para ganhar as próximas legislativas, se bem que longe dos resultados de 2005. Há culpas na ineficácia da oposição é certo, mas há que reconhecer a habilidade política do actual primeiro-ministro, mesmo quando confrontado com ameaças internas que se perfilam no partido vindas de lideranças errantes, como as encabeçadas ora por Manuel Alegre (a fazer render o milhão de votos das presidenciais) ora por Mário Soares (eterna eminência parda que assombra de quando em vez a actuação governativa com aproximações à agenda da oposição). Independentemente de se encontrar escudado numa hábil máquina partidária (a que não pode ser estranha a actuação de uma velha raposa chamada Almeida Santos e o papel de guardião do aparelho partidário desempenhado por Santos Silva) e numa sólida maioria parlamentar ávida do seu estatuto, Sócrates faz valer-se do peso que detém enquanto principal rosto de uma geração de líderes provinda do "guterrismo" que, inevitavelmente, se afirma como a chave mestra para permitir ao aparelho socialista a manutenção do poder.
Em tudo o resto, José Sócrates é medíocre. E só não desce abaixo da mediocridade porque quase tudo o que o rodeia não é capaz de ser melhor que isso. O actual primeiro-ministro é nitidamente um produto destes tempos de descrédito dos agentes políticos, um resultado do nosso tão português «medo de existir», uma espécie de actor que encarna o papel com um guião suficientemente credível para as expectativas baixas do seu público. José Sócrates é uma interpretação mediana de alguém que, não sendo nem particularmente dotado nem talentoso, teve frequentes lapsos de engenho político nos momentos indicados, o que faz dele alguém que aproveitando a vaga vai sabendo evitar a espuma. Apesar de na vida real ter andado metido em situações um pouco dúbias, como uns projectos de engenharia duvidosos lá para a Beira Interior ou um sarilho de proporções mal decifradas denominado Universidade Independente, o maior risco que corre não parece ser, à partida, nem a crise nem este "caso Freeport". A ameaça velada aos seus objectivos vem dos ventos soprados por Belém, sobretudo se antes da data projectada para as legislativas trouxer tempestade. A hipótese é remota mas, não convirá descuidá-la perante uma conjuntura tão complexa que poderá envolver à gestão da crise um eventual problema de carácter.
Independentemente do que se possa pensar de menos positivo sobre o primeiro-ministro de Portugal, para lá das questões da política e das controvérsias que envolvem o passado de Sócrates, estou cada vez mais certo que há lobos bem mais ferozes que ele. E quer-me parecer que se movem como hienas perante uma carcaça que ainda estrebucha. Talvez isso justifique este caso do outlet com aquele estranho elenco de protagonistas que, se aliado ao timing das incidências públicas do caso, só podem ser lidas ou ao abrigo da tese da cabala ou como a mais infeliz das "coincidências" para um político com demasiados esqueletos no armário.
Porém, a favor de Sócrates joga um "caso Freeport"que caminha a passos largos para o descrédito, não pelo ruído que faz mas pelo facto de quando o faz. O eventual crime de corrupção vem a lume quando o secretário-geral do PS se prepara para enfrentar as eleições legislativas de 2005 e regressa agora, de novo, quando o primeiro-ministro se candidata a um segundo mandato. Agora, estes dois últimos desenvolvimentos não deixam de ser particularmente estranhos nos seus tempos de ocorrência: primeiro, o artigo do bastonário da Ordem dos Advogados que pela informação fundamentada que contém (e restringida ao processo e a processos anexos) se torna incontornável na exposição do caso perante a opinião pública; segundo, menos de 24 horas depois do artigo ser tornado público surge uma “conveniente” gravação visando secundarizar por completo o teor do artigo de Marinho Pinto, como se para um grande mal fosse imediatamente necessário um grande remédio.
O facto de ser aquela televisão a difundir o teor da gravação do suposto dvd com direito a uma dramatização encenada não pode parecer inocente ou ser confundido com furo jornalístico. De facto, a televisão de José Eduardo Moniz tem sido um dos meios de comunicação social mais hostis ao governo ao longo desta legislatura e não pode haver aqui confusão com tabloidização banalizada e muito menos com informação isenta. A exemplo, e a prová-lo, estão considerações constantes, laterais ao dever de informar, levadas a cabo em inúmeras emissões do principal telejornal da estação pelo seu mais influente pivot. Convém não esquecer que será de bom senso existirem fronteiras definidas entre informação e opinação, nem que seja em defesa do bom jornalismo.
O envolvimento na produção de factos passíveis de acção judicial por pessoas ligadas ao maior partido da oposição, e particularmente ao principal adversário político de Sócrates nas últimas eleições, só pode ser mesmo uma muito estranha e grave coincidência se quisermos ver todo o filme pelo prisma da realidade. Coisas destas não se passam num Estado de direito democrático! Mas, como aqui mandam as regras do seriado, nada como um ex-chefe de gabinete de alguém que até já foi primeiro-ministro, membros do maior partido opositor ao actual partido do governo e uns inspectores da Polícia Judiciária numa sala da casa de um jornalista com notória filiação partidária para termos emoção a rodos. Perante isto, porque não equacionar a tese de que há aqui uma conspiração sem deixar cair as dúvidas sobre o relacionamento de um primeiro-ministro nesta trapalhada toda?
Mas, estamos apenas a conjecturar uma mera teoria da conspiração sobre qualquer coisa que pode, ou não, ter acontecido. A estas hipotéticas leituras, quase tão fantasiosas quanto os factos que aqui se trataram, poderiamos ainda verificar as reacções ao artigo de Marinho Pinto por parte de alguns dos seus mais ilustres pares para, num ápice, perceber que o primeiro-ministro cooptou o bastonário da mais influente ordem profissional do País para a sua trincheira. Mas chega! Isso eram mais umas centenas de palavras e a realidade não pode ser mesmo coisa que se enfrente. Sobretudo aqui, em Portugal.
Nota final: Para quem queira congeminar a sua própria teoria da conspiração acerca do caso aqui ficam algumas fontes a consultar: