sábado, 26 de novembro de 2011

Duas ou três coisas sobre ela

DA DEMOCRACIA. Não surpreende. Nada surpreende. Mesmo nada, quando alguém diz que uma greve é um direito inalienável dos cidadãos em democracia. E, depois, vêm outros e apuseram, apuseram sem parar a mesma ideia como bons democratas numa bendita democracia. Um direito inalienável dos cidadãos que, esperem que ainda falam os democratas, tem o condão de lixar a vida a quem quer trabalhar, apesar de a greve ser um direito inalienável dos cidadãos em democracia. Isso, senhores, isso de não deixar trabalhar quem quer é imperdoável! Quem se julgam os grevistas para exercer a ditadura sobre os que vão trabalhar? Raios partam os motoristas dos autocarros, os maquinistas dos comboios ou os controladores aéreos que não deviam usufruir desse direito de fazer greve ao mesmo tempo. E repetem os democratas, e os que querem ir trabalhar? E, eu grevista, devia sentir-me culpado, mas não sinto.
DO COLECTIVO. Ganha-se muito bem em Portugal, sobretudo na função pública, poderia ser a frase que ninguém ousou dizer enquanto se percebiam os números da greve a crescer. Porém, ficou no ar a táctica do implícito, essas entrelinhas, virtude retórica de muitos reputados democratas que vão à rádio e à tv analisar a greve. Porque, voltemos ao implícito, fazer uma greve custa dinheiro a quem a faz. Que porra, é um dia de ordenado e estamos todos mais para o lado do falido que outra coisa. Mas, o que importa é dar três vivas enérgicas a quem, contra tudo e contra todos, vai trabalhar em dia de greve. Os que a fazem que a paguem e, se o que foi trabalhar alguma coisa satisfizer com o caderno de encargos dos grevistas, melhor. Quem manda esses grevistas serem ursos? Não têm outro nome, os grevistas, ursos que sacrificam um dia de salário quando, afinal, já estamos todos irremediavelmente fodidos. Para quê fazer greve, é preciso trabalhar, duas vezes trabalhar, como mandam os gajos que nos fodem. Essa coisa da luta colectiva e da solidariedade entre trabalhadores é tudo balelas do passado. Só não convém esquecer é que se houver folga na foda, os que trabalharam também mamam como os outros mamíferos que são ursos. Mas, não foi sempre assim?, pergunto, eu grevista.
DA JUSTIÇA. Dói no bolso de quem faz greve. E no bolso do País? Os bandidos não são os tipos que proporcionaram o estado a que chegámos e, consequentemente, a greve. Bandidos são esses milhões de grevistas. E os gajos que se vão manifestar e cortam o trânsito. Se ficarmos gregos como estamos ainda vem para aí outra greve, e outra, e mais outra. Se não fossem as greves a Grécia não estaria falida e vergada como está. Que raio, direito e democracia sim, mas deixar os sindicatos levarem o País à falência não. Até porque isso do poder a andar pela rua só leva à desgraça. É preciso trabalhar para ser produtivo. Salários dignos? Qual quê. É preciso ajustarmos, ajustarmos por um Portugal ajustado aos novos tempos. Com tanto ajuste, ninguem nos agarra! E agora mais uma: honrar compromissos com credores. E outra: vergar, se preciso, os sindicatos. Tudo em nome do interesse nacional. Censuras? Referendos? Somos todos democratas, caramba. A greve sim, mas pequenina, de modo a que se consiga ir trabalhar e não se dê por ela. Até porque Portugal não pode andar a pagar greves. Malhem nos grevistas e deixem-nos trabalhar, pareceu-me ouvir lá dos lados de São Bento. Cá está, o democrata que o disse foi ouvido e avança a polícia para “malhar” nos manifestantes num directo para a tv. Mergulho no silêncio, eu grevista.