sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O Meu Alentejo

A imensidão da paisagem sublime e agreste, sulcada por rastros de suor e sangue de subjugados e sobreviventes, entre sobreiros e oliveiras polvilhadas no horizonte, trigo ao vento esbracejando, poejo e tomilho aromatizando as brisas quentes do Sul, vinhedos carregados do melhor néctar que outrora os deuses e os homens souberam fadar; eis o Alentejo, a terra que me conta as histórias. É ali que está parte do coração de mim, o primogénito da geração urbana que atravessou o Tejo e se fixou na capital há quase quarenta anos atrás. Como se o tempo tivesse por vezes o segredo de não significar nada mais que um sopro quando voltamos onde nem nunca estivemos.
A paz no desejo imenso de reencontrar a planície infinita, entre a alegria de sentir debaixo dos pés as raízes que me estão nos genes e o peso da recordação das tragédias marcadas numa “Seara de Vento”, como a que Manuel da Fonseca, esse contemporâneo e companheiro de lutas de meu avô Carraça, tão rutilantemente ilustrou, levam-me a sonhar o meu Alentejo. Como se nos meus passos por terras curtidas no braseiro do sol, vivesse um passado onde tantas vezes “os camponeses arrastam as botas cardadas, num ressoar soturno”. Essa, e tantas outras histórias que fizeram parte do meu imaginário por vezes longínquo dessa ruralidade de tragédia e de sofrimento, mas também de riso e de comédia.
Neste Alentejo habitam as histórias que a minha avó me contava em criança. Eram tempos de dor e crueldade, assentes na brutal exploração do trabalho de sol a sol para riqueza dos senhores da terra. Mas, neste mundo de traços tão vincadamente feudalistas, o latifúndio mergulhava no mistério, até porque, em tempos de breu, os fantasmas surgiam vindos sabe-se lá de onde e torneavam na noite as esquinas caiadas de branco para espanto de caminhantes solitários. E, já que evoco os fantasmas, confesso que jamais esquecerei o arrepio na espinha que me provocava aquela história da viúva eremita que em noites de lua nova, numa encruzilhada remota, falava com o demónio, não para atingir perfeições metafísicas à Fausto, mas para recuperar o marido que deus levara sem aviso prévio.
Para qualquer mal, fosse do sobrenatural ou do natural, havia sempre uma mezinha dada pela terra para a maleita. Desde as ervas para fins muito delicados do corpo e do espírito que cresciam em locais remotos da planície e obedeciam a uma arte precisa para serem colhidas à aguardente misturada em leite bem quente para combater o pingo ou males piores do inverno, passando por todos os tipos de efusões para todo e qualquer problema, a magia soltava-se sempre por terras desse Alentejo narrado em viva voz com brilhantismo e graça pela minha querida avó Cristina. Era ela a mulher que me abria a janela para esse além-Tejo que o meu lado paterno deixara definitivamente para trás; e só agora, passados quase vinte anos sobre o seu desaparecimento, o entendi.
Voltei do Alentejo. Dois dias apenas, ali pela raia, local que presumo não ter laços com a minha família, nem mesmo do lado materno, mais extenso e nómada. Independentemente disso, e como se da Espanha ao mar se compreendesse um mundo, ali está este pedaço de mundo onde se encontra a raiz de onde eu venho. E, como dizem que os alfacinhas não têm terra, tenho para mim a ideia de que neste vasto Alentejo, seja para as bandas do mar seja no caminho de Castela, se guarda algures uma terra que é minha.
foto: Patricia Passarinho