quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Sangue do Meu Sangue | entrevista João Canijo

A 18 de Outubro, após a apresentação de Sangue do Meu Sangue no Festival de Busan, na Coreia do Sul, consegui, por fim, falar com João Canijo a propósito do seu filme. Fora uma entrevista adiada pela ida do realizador a paragens tão longinquas, mas também por não querer "massacrar" alguem que estaria a padecer de jet leg nos dias seguintes ao regresso. Assim, lá nos encontrámos na Casa da Imprensa, hoje sede da produtora Midas Filmes. Muito daquilo que falámos ficou de fora, nomeadamente uma nova relação de incesto no cinema de Canijo desta vez por "culpa" da Rita Blanco ou a experiência de suburbio francês vivida pelo realizador e pelo seu director de fotografia aquando dos trabalhos preparatórios de Ganhar a Vida. Outras tiveram que ser suavizadas porque, aquilo que mais agrada numa conversa com o João Canijo, é ele não se coibir nunca de chamar "os bois pelos nomes" (já tinha percebido isso na primeira ocasião em que o entrevistei mas agora, pela informalidade da conversa, isso foi mais perceptível). A entrevista foi publicada na edição desta semana da newsletter Lisboa Cultural. As (excelentes)fotos são do Francisco Levita.

A REALIDADE NÃO É UM PAÍS ESTRANHO
Aclamado pelo público e pela crítica, Sangue do Meu Sangue continua a ser um sucesso nas salas de cinemas nacionais e a ser celebrado nalguns dos mais destacados festivais internacionais de cinema. A mais recente obra de João Canijo é um exercício sublime de realismo, cru e visceral, onde o meio nunca se dissocia da tragédia que assombra a vida sofrida de três mulheres capazes, no limite, de tudo por amor. Após a apresentação do filme na Coreia do Sul, o realizador concedeu uma entrevista exclusiva à Lisboa Cultural onde fala do flagelo dos bairros periféricos, do agora denominado “método Canijo” e das mulheres.

Depois de tanto desamor em Noite Escura e Mal Nascida, eis Sangue do Meu Sangue, um filme sobre amor incondicional. Como é que aconteceu esta viragem?
Exactamente porque ambos, mas sobretudo o meu último filme de ficção [Mal Nascida (2007)], era sobre a falta de amor. Logicamente, quis agora fazer um filme sobre o amor que não é questionado. Esse era o ponto de partida. Depois, esse amor teria de ser vivido num bairro social, da periferia da cidade. À maneira dos americanos, diria que é a história de uma mãe que arrisca perder uma filha para a salvar e de uma tia que se perde para salvar o sobrinho.

E porquê o bairro social?
Quis situar a acção num sítio onde as pessoas têm de lutar muito pela sobrevivência, onde não têm tempo para elaborar e racionalizar pensamentos sobre os sentimentos. Limitam-se a vivê-los e a tê-los à flor da pela, de uma maneira muito orgânica. E, era isso que me interessava, não aquele tipo de sentimentos disfarçados ou ocultos por camadas de pensamento muito elaborado.

E é assim que mergulha no Bairro Padre Cruz…
Aconteceu após muitas viagens no eixo Amadora-Sintra, onde descobri não existirem bairros sociais antigos, já que datam todos do final do século passado. No Bairro Padre Cruz encontrei uma malha urbana muito especial e descobri uma casa, não um apartamento, que tivesse sido habitada por duas ou três gerações. Isso era essencial para transmitir a ideia da família que está muito enraizada naquele meio.

O Bairro Padre Cruz surpreendeu-o?
Apesar de ter uma certa ideia do bairro, sim porque pensava ser um aglomerado de prédios de apartamentos e descobri algo completamente diferente. Naquele que é o maior bairro social da Europa, há uma parte antiga, mais pequena, que foi a sua génese. O Bairro Padre Cruz foi construído para alojar os cantoneiros da Câmara Municipal de Lisboa e foi pensado como uma aldeia, com casinhas baixas e com uma particularidade que em nenhum bairro social do salazarismo existe: as ruas pedonais. O que é surpreendente, e tem graça, é que essas ruas têm escadas, são empedradas, sem trânsito e funcionam como pátios comuns…

O ambiente perfeito para o filme…
Sabe que muitas vezes as coisas próximas são aquilo que não vimos, e que apenas se descobrem por acaso, ou não tanto por acaso. A minha antiga mulher-a-dias, a Sra. D. Felicidade, que trabalhou para mim durante 16 anos e que faz parte da família, vive lá, precisamente na mesma casa que a actual. Acabou por ser a filha dela a servir-me de guia no bairro, permitindo-me, durante três meses, fazer entrevistas junto da população e conhecer aquele meio.

Como descobre aquela casa?
Aquela zona do bairro era para ser demolida (agora, devido à crise, já não vai ser). Cerca de metade daquelas casinhas estavam devolutas, portanto foi fácil ter uma casa vazia que pudéssemos remodelar e adaptar ao filme. As pessoas do bairro também nos ajudaram e a casa que escolhemos foi, por sinal, uma das primeiras que visitámos.

O João estuda profundamente o meio onde se passam os seus filmes. Viveu dois anos num bairro social dos arredores de Paris aquando de Ganhar a Vida e percorreu centenas de bares de alterne para fazer Noite Escura. É ai, no contacto directo com a realidade, que começa o “método Canijo”?
Penso que não se pode abordar um assunto que se passa num determinado meio sem o conhecer profundamente. Dou um exemplo: o Guillerme Arriaga, argumentista do [Alejandro G.] Iñarritu, quando ganhou um prémio em Cannes, foi questionado sobre o tempo que demorava a escrever um argumento; respondeu “agora que já tenho mais prática, demoro dois anos e meio”. Isto sucede porque faz exactamente a mesma pesquisa. Eu não posso falar sobre um bairro social sem conhecê-lo.

E como aplica o “método” aos actores?
Desta vez fui mais radical e fiz exactamente como queria [risos]. O argumento foi escrito com os actores desde o início. O tema era o amor incondicional num bairro social, havia uma mãe e uma filha, definiu-se que a mãe era mãe solteira e havia uma irmã e outro filho. Depois seguiu-se a construção das personagens, com os actores a definirem profundamente quem eram e a irem trabalhar nas profissões que escolheram para as suas personagens: a Rita Blanco foi trabalhar para um restaurante; a Anabela Moreira trabalhou num cabeleireiro do Centro Comercial Babilónia, na Amadora; a Cleia Almeida e a Teresa Tavares estiveram num supermercado… Depois, fomos definindo as relações entre as personagens e as situações que poderiam acontecer…

Foi, portanto, um work in progress?
Completamente. Que acabou testado durante um mês de improvisações, já com as cenas escritas, respeitando os movimentos emocionais dessas mesmas cenas, sendo dai que saiu o guião definitivo.
Deixe-me só voltar aos actores e ao desenvolvimento das personagens nas suas profissões… Até que ponto é que essa experiência dá realismo e consistência às interpretações?
Ao contrário do que o senso comum pensa, adaptar uma personagem a um meio não é imitar figuras desse mesmo meio. O processo passa por permitir que o meio entre dentro do actor por contágio. Um exemplo simples: eu sou do Porto e já não tenho grande sotaque; se estiver lá uns dias, o sotaque e o modo de construir as frases voltam naturalmente. E, repare, não estou a imitar ninguém. Acontece, naturalmente, por contágio.
Todo este processo garante uma autenticidade perturbadora às personagens de Sangue do Meu Sangue e, curiosamente, a personagem do Nuno Lopes – o dealer – surge no filme como um pai extremoso, nada fazendo antever o “monstro” que é.
Toda a autenticidade parte do trabalho e da entrega dos actores e, tal qual como na vida real, as pessoas são assim. Lembro que há uns bons anos atrás, num restaurante no Algarve, na mesa ao lado da minha, estava um edil que agora anda com problemas com a justiça a jantar com a família; não imagina como ele era um avô babadíssimo com os netos… [risos]

O filme sublinha o fascínio, por um lado, e o desconhecimento, por outro, dos mundos co-existentes na sociedade portuguesa. Refiro-me, por exemplo, à justificação que a Márcia (Rita Blanco) encontra para o caso da filha com um homem casado e bem-sucedido e o desconhecimento revelado por Maria da Luz (Beatriz Batarda), a senhora da alta-sociedade, em relação à existência de uma realidade que ela não conhece ou não quer ver.
Como em todos os meus filmes desde Sapatos Pretos quero que o espectador veja uma parte do Portugal que as pessoas sabem que existe mas não conhecem. O meu cinema é político nesse sentido, porque tenho a convicção que é muito difícil pôr o português a olhar para si próprio. Lisboa, por exemplo, não é, de modo algum, aquilo que aparece nos bilhetes-postais. Eu próprio fiquei surpreendido quando descobri que o melhor do subúrbio é o bairro social – a construção selvagem, sem espaço e sem convivialidade, é muito pior. Infelizmente, os lisboetas de hoje são maioritariamente pessoas que habitam os subúrbios. E essa fórmula de eixo Amadora-Sintra já se espalhou por todo o país… vou, precisamente, fazer um documentário sobre isso.

É um director de actrizes?
Não me considero um director. Descobri há muito tempo que não se dirigem actores, trabalha-se com eles. Mas, claro que prefiro trabalhar com actrizes porque gosto dessa capacidade de entrega e de disponibilidade que é biologicamente inerente à mulher.

sábado, 22 de outubro de 2011

Números para a desinformação

Soube-se há dias, pela imprensa, que o Banco de Portugal, essa instituição de credibilidade imaculada, concluiu que os funcionários públicos ganham 15% a mais que os trabalhadores do privado. O estudo, incólume e com toda a certeza rigoroso no uso do método cientifico, aponta o interessante número de 1.491 euros como média de ordenado no Estado e, como o horário de trabalho no público é mais reduzido que no privado, o valor hora vale, em média, 10,50 euros contra apenas 5,50 no privado.

A estes dados soma-se uma conclusão (natural): os quadros técnicos superiores ganham mais no privado que no público; o inverso sucede quando se tratam de trabalhadores menos qualificados. Segundo a imprensa, nada mais a assinalar! Nem sequer uma explicação acerca da forma como se chegou a estes valores. Apenas o olhar sobre os resultados de um estudo que aparece menos de uma semana depois de Passos Coelho ter atacado violentamente os funcionários públicos e os pensionistas, e ter usado, precisamente, estes argumentos para legitimar o corte nos subsídios de férias e natal (até porque já toda a gente esqueceu as horas extraordinárias que vão passar a valer metade no Estado).

Como já alguém disse, as médias são sempre muito perniciosas. Neste tipo de estudo é essencial questionar qual foi o universo-alvo. Terão sido apenas os funcionários públicos (e da administração local) ou estarão incluídos os trabalhadores das empresas públicas, institutos públicos, fundações ou outras entidades que têm regras de gestão autonomizada, muitas delas na esfera do direito privado? Repare-se que, em inúmeras instituições públicas, uma parte considerável dos contratos de trabalho obedecem a regras semelhantes às do sector privado e os ordenados não correspondem, efectivamente, às tabelas de vencimentos em vigor na administração pública.

Outro número que pairou sobre a cabeça dos portugueses ao longo da semana foi o das vítimas da medida criminosa defendida pelo Orçamento do Estado para o próximo ano: mais de 400 mil portugueses, sendo que (segundo o governo) 88% dos pensionistas ficam fora da medida (será porque têm pensões que não atingem o ordenado mínimo nacional?).

Por entre os números, dados como estes escamoteiam os baixos salários que se praticam em Portugal, fragmentam o universo dos trabalhadores, corrompem a razão e legitimam uma medida que, evidentemente, também vai ter repercussão no sector privado. A imprensa portuguesa, cada vez mais amorfa e obediente a vontades estranhas à liberdade e ao direito de informar, vai fazendo o jeito e, assim, contribui para a desinformação. À boa maneira da propaganda de guerra!


Apenas uma nota: às declarações de Passos Coelho, parafraseando Cavaco há mais de dez anos - ele que, por sua vez, usava a imagem do Leviathan de Hobbes -, “atacar o monstro” não pode ser destruir o País. Neste momento, o “monstro” é o sistema com que este governo pactua e, pior ainda, protege à custa de empurrar Portugal para o sub-desenvolvimento.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Da doença nacional

Que Portugal é um país doente já ninguém duvida. Dois sintomas claros são o silêncio e o esquecimento. Para não ser forçado a recuar aos que estão ligados ao agravamento sucessivo da maleita, não deixa de ser curioso o silêncio do ex-primeiro-ministro ou do ex-ministro das finanças que, perante os ataques deste novo governo, deveriam ter a dignidade de defender a honra. Ou então, numa postura condigna com o estatuto de antigos governantes, colocarem-se à disposição do povo, através dos múltiplos instrumentos do Estado de direito, para serem prestados esclarecimentos acerca do estado a que chegámos.

Provavelmente, estarei a ser assolado por algum sopro de frio islandês ao desejar pensar os ex-governantes de Portugal como gente de bem e os portugueses como um povo determinado a não pensar que a democracia se esgota nas urnas de voto. Mas, voltando à vaca fria, deixem-me confessar que gostaria de acreditar no velho provérbio “quem não deve, não teme”, bem como, em algo que deveria ser por cá muito mais do que uma abstracção, quer para os agentes políticos quer para os cidadãos. Refiro-me, naturalmente, à justiça.

Depois de anunciar as medidas terroristas e criminosas (como o tempo, tragicamente, dará razão a esta adjectivação!) contidas no Orçamento do Estado, no último fim-de-semana o primeiro-ministro sugeriu que quem gere mal a coisa pública deve ser julgado pelos tribunais. Apesar de todos sabermos que tal não passou de um desabafo inconsequente de alguém que seria certamente réu nesse projecto de intenção, não deixa de ser estranho o silêncio daqueles que, afinal, querem ser esquecidos. Nem que seja por momentos (para depois, à semelhança de outros, voltarem como se nada se tivesse passado), a isso chamar-se-ia honra.

Infelizmente, honra e justiça são, em Portugal, matérias do silêncio e do esquecimento.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

E a Grécia aqui tão perto

Há quem diga, numa talvez pouco graciosa (e até mesmo sensacionalista) teoria da conspiração, que o FMI elegeu a Grécia, e consequentemente Portugal, para exercícios empíricos de pressupostos económicos inéditos. Ou seja, a gregos, mas também a portugueses, como europeus de segunda que são, serve à medida a carapuça de cobaias. Basta querer, que os homens de mão de lá, como os de cá, estão sempre à altura do mandamento.

Não sei se é o FMI que lidera o improvável plano mas, seja lá quem for, e montando o puzzle da inverosímil teoria, vamos percebendo que nós, os portugueses, somos mais gregos do que julgávamos. Historicamente e, sem contar com o legado cultural e filosófico herdado, durante o século XX sofremos a penumbra da ditadura; fomos praticamente contemporâneos na entrada para a CEE; fomos quase gémeos no modelo de desenvolvimento apontado pelos iluminados burocratas de Bruxelas para os nossos países; fomos perfeitos a eleger os piores políticos que, consequentemente, formaram maus governos; e, agora, partilhamos austeridade que se confunde cada vez mais com brutalidade.

Se os gregos chegaram primeiro ao declínio imposto e/ou conspirado (vá-se lá saber...), os portugueses caminham vertiginosamente para os apanhar. Sendo o cinto dos trabalhadores gregos mais folgado que o dos portugueses, o desastre demorou quase dois anos a instalar-se em toda a plenitude. Por aqui, com ou sem conspiração do FMI, depois do Orçamento do Estado para 2012 apresentado por Passos Coelho, temos a garantia que vamos ser gregos mais depressa do que esperávamos. Por este caminho, a taça que não desejamos vai mesmo ser nossa.