sábado, 23 de janeiro de 2010

O Europa


Temo que da Lisboa da minha infância, aos poucos, nada reste. Aquela velha Lisboa, renascida de Abril, tinha elementos absolutamente míticos para mim. Eram eles, os grandes cinemas, por sinal, heranças da ditadura.
Deslumbrava-me sempre quando, de automóvel, cruzava o Saldanha e me perdia no magnânime cartaz do Monumental. Recordo o Alvalade, onde vi, por exemplo, a “Música no Coração” numa reprise de verão. O Império, que há-de sempre ficar ligado a “Lawrence da Arábia”, filme que me fez sentir com areia nos pés de miúdo no final de uma matinée. O Pathé, onde a minha avó me levou a ver um filme da “Sisi” interpretado pela deslumbrante Rommy Schneider, uma das minhas paixões de tenra infância.

Disso, nada mais existe. O Monumental é um edifício dito moderno de gosto duvidoso e na memória registo melhor os tempos em que ali nada existia do que aquele tão belo cinema em que vi, entre outros filmes, o “Ben-Hur” (também numa abençoada reprise de verão). O Alvalade é hoje um condomínio e por lá está um multiplex que se quer alternativo mas ao qual auguro um futuro algo inconsistente. No Império, louva-se um senhor que rende muita massa e, de bom, só a iniciativa de ver resgatado aos vendilhões da fé o histórico Café Império (o que, diga-se, é hoje digno de ser um sinal de modernidade por aquelas paragens). Quanto ao Pathé, a triste sina é ser um edifício devoluto que, de tão emparedado numa zona em constante decadência, ainda não foi alvo da cobiça da pior espécie que este País produziu: os patos-bravos!

Ontem, a cidade de Lisboa soube, definitivamente, que iria perder outro local mítico: o velho Cinema Europa, em Campo de Ourique. É certo que o Europa a funcionar é algo que não recordo. Ligo-o às emissões de televisão que por lá se fizeram – os directos do Júlio Isidro e os concursos do Carlos Cruz, talvez. Lembro-me de lá passar frequentemente numa determinada altura da minha vida com o edificio fechado, e de sentir que não me era indiferente pela sua beleza arquitectónica, a fazer lembrar salas desaparecidas tão intimamente ligadas à minha infância.

Agora, sabe-se que o Europa vai mesmo abaixo. Independentemente do IPAAR, ou seu sucedâneo, o reconhecer como edifício com características arquitectónicas muito específicas, nunca o classificaram, vá-se lá saber porquê! Diz-se que serão preservados alguns aspectos do actual edifício, como o alto-relevo e os vitrais. E, se a Câmara de Lisboa arranjar uns trocados talvez seja possível reservar-se um piso (provavelmente o térreo) para um centro cultural de base local.
Porém, para sempre, aquele cinema, aquela sala histórica de Campo de Ourique morrerá. Em nome de um desenvolvimento pacóvio que está a destruir a cidade, a extrair-lhe vida e a matar lentamente os bairros que perdem pessoas e motivos para continuarem a existir enquanto verdadeiros centros da comunidade. O que interessa é sempre a rentabilidade financeira que um qualquer condomínio, futuramente habitado por gente que estaciona o automóvel na garagem e quando saí à rua ruma a um shopping de subúrbio, trará a uns quantos tratantes aos quais nada mais interessa que um ocasional bezerro de ouro. A custas, uma vez mais de Lisboa e dos lisboetas.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Essa Liberdade de Expressão

Estou provavelmente em ressaca de “Caim”. Quero ter a liberdade de discutir com deus, mas também com os homens. Sinto que as verdades deste mundo violam simplesmente algumas regras predefinidas… o quanto odeio predefinições, por achá-las pacóvias e mesquinhas, nascituras de ocasos aleatórios de decadência extrema. Porventura, mesmo castradoras e exangues nas abordagens. Porque o maravilhoso na nossa individualidade somos nós, e por mais que seja dolorosa, tenhamos que conviver com ela, a debilitada individualidade.
Mas, comecemos pelo princípio da narrativa, que pomposamente assim se chama por não querer o autor apelidá-la de episódica ou meramente fugaz, porque assim são as normas do português vivo e olvidado das palavras ainda não contempladas nos mistérios da objectividade e da síntese.
À séria, acabo de ler, no último número da revista do “Clube de Jornalistas”, o seguinte:
Há um jornal na praça que se orgulha de escrever tudo em trinta linhas e usar 100 palavras, uma coisa dessas. As razões decorrem do facto {o autor é brasileiro e usou “fato”} de que o jornalista despreza o público nativo. Ele tem a certeza de que a maioria é composta por imbecis. (…) Eles tentaram se adaptar à imbecilidade dos leitores”
A autoria destas palavras vem de Mino Carta, jornalista brasileiro de origem italiana, ex-editor de algumas das mais importantes publicações brasileiras, e a crítica assenta que nem uma luva no perfil editorial da revista Veja, a mais vendida e difundida no Brasil. Reconhecem-na com certeza, na nossa lusitana praça, feita de is de informação ou públicos decompostos em combustão, para aqui não acrescentar essa espécie descrita como diários de... etc. e tal (sem favoritismos, digo eu que prezo a palavra de honra)?
Não vou esgrimir os argumentos de um jornalista brasileiro que considera o jornalismo brasileiro “medíocre”. O nosso também é; Olá, meus caros amigos, se é!
Há 10 anos, trabalhei num dos maiores jornais nacionais e depressa me apercebi que o jornalismo é um fúlgido exercício de manutenção da tentadora fogueira de vaidades em que mergulhámos; eis o 4ª poder tornado poder estéril, tacanho e opressor, como todo o poder. Belos tempos em que se produziam jornalistas de carne e osso que entendiam o universo jornalistico como o caminho da verdade, olhando o mundo como um todo, enfrentando mordaças e becos inevitáveis. Rectas criaturas, louvado seja deus!
Bairro Alto, lembram-se? Explicito bem o burgo nacional destes seres, hoje "imundos" e ocasionais escritores, os que o são, aos olhos de puritanos e conservadores de espirito. E relembro, essa universidade conjugada num verbo inexistente, sempre universal, declinado em factos dignos como o de ser livre. Mesmo que os tempos detenham o método pernicioso de fazer parecer aquilo que não se é, livre, pois então! Duvidam? vejam os nomes de que lá sairam: pelo menos um nobel e mais uns quantos de costela hirta e esfíncter recto (apesar de honrosas excepções, que é nisto que se é humanamente belo, apesar de tudo o mais!).
Assustador, é quando me apercebo o que se passa, hoje! Creio cada vez mais na falácia da nossa academia que é burra, castradora e estupidificante. E, sem temores, o nosso mundo vai mal quando o supletivo é o conteúdo. Somos uma farsa. A nossa liberdade é uma farsa. Como o verbo o é!
Ai, o verbo o é! Duvidam?

domingo, 17 de janeiro de 2010

"Caim" ou uma digressão pelo Antigo Testamento


Não bastavam Sodoma e Gomorra arrasadas pelo fogo, aqui, no sopé do monte Sinai, ficara patente a prova irrefutável da profunda maldade do senhor, três mil homens mortos só porque ele tinha ficado irritado com a invenção de um suposto rival em figura de bezerro, Eu não fiz mais que matar um irmão e o senhor castigou-me, quero ver agora quem vai castigar o senhor por estas mortes, pensou Caim, e logo continuou, Lúcifer sabia bem o que fazia quando se rebelou contra deus, há quem diga que o fez por inveja e não é certo, o que ele conhecia era a maligna natureza do sujeito.
Caim”, José Saramago

Que raio de deus é este que louvam. O tal, esse ente omnipotente, omnipresente, omnisciente que ama os homens mas traz-lhes a desgraça, ou para simplificar, indo ao encontro do escritor, esse que não nos entende, nem nós o entendemos a ele. Este “Caim”, que José Saramago transformou viajante do tempo e do espaço entre episódios bíblicos do Antigo Testamento, vem marcado por deus e jogado à sua sorte no mundo, e pelo criador talhado há-de fazer das tripas coração para perceber onde está o bem que tanto se proclama vir do céu.
Por que dilemas e provações passará Caim nesta jornada bíblica, narrada à moda dos jograis, que se ainda os houvesse fariam coisa parecida com este grande pequeno livro de Saramago. Caim, o que matou o irmão porque o senhor o renegou. O que foi poupado para ver quão maléfica pode ser a justiça divina, capaz de derramar sangue ou cuspir fogo sobre cidades, ou exasperar-se com a criação e tudo prover inundar. E ali, condenado à existência solitária resta o debate sem fim com ele, o divino, o criador, esse louvado deus de glórias e misérias humanas e sob-humanas.
foto: Diário de Notícias

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

2010

(O primeiro ano da segunda década do milénio, a partir de fragmentos de um humanista ocidental)
Há dez anos atrás, o mundo encontrava-se suspenso por chegar a 2000, e a ameaça anunciada perfilava-se num bug informático que nos arrastaria para o caos. Parece caricato, como caricato parece relembrar o caos que se anunciou e nunca aconteceu. E nem pensar nas referências bíblicas ou nas profecias catastrofistas de Nostradamus e semelhantes charlatães de vistas largas que alimentam os mitos e os ritos de uma humanidade sequiosa por crenças e medos forjados nas incertezas do futuro.
Mas saltemos para o último dia do ano que findou. O ano que deixou para trás uma década onde tudo aconteceu daquilo em que a história dos homens é pródiga: fome, guerra, flagelos, vida e morte, e tudo mais. A nossa civilização rejubilante pintalgada em fogos de artifício, inovações tecnológicas e riqueza a rodos, ou a grande falácia em que nos instalámos, fazendo-nos tão prósperos que abandonámos a natureza mais autêntica da realidade em que vivemos? Porque se agora tudo é global, porque continuamos a pensar que o nosso estado civilizacional baseado em consumo e opulência é uma verdade inquestionável. Será porque teimamos em não entender nada do que se passa à nossa volta e preferimos escondermo-nos nas nossas carapaças de indivíduos tecnológicos?
Seria demasiadamente demodê, para não o considerar fora de tempo, lançar-me aqui num balanço do ano ou da década. Isso nem sequer faz sentido, mais ainda se estamos num estádio de pensamentos e de racionalidades imediatas e descartáveis. Em suma, nada mais seria que uma perda fastidiosa de tempo num feriado em que se pensa o que muda ou pouco muda a partir deste ponto do calendário. O que sucedeu ao longo dos dez anos passados sobre 2000 que nos mereça um registo consistente? - o impensável a 11 de Setembro de 2001? a guerra reeditada no Iraque e no Afeganistão? a crise do capitalismo global? a agonia do planeta?
Seguimos na continuação incerta de tempo irregularmente incerto. Vamos tentar perceber para onde nos leva o estado a que chegámos. Continuaremos iludidos, com certeza, até nos surpreendermos; é humano, demasiadamente humano! A crise económica, os fundamentalismos religiosos, os paradigmas que teimosamente persistem. A tudo isto, junta-se um planeta gritando socorro, e a ressaca das frustrações de Copenhaga a apontarem como somos estupidamente suicidas.
Hoje, aqui estamos. E, daqui a dez anos, como será? - Um novo ano, uma nova década, e tal como hoje, aqui e ali, uns quantos lutando por um mundo melhor, mais livre, mais equilibrado e mais justo. Em nome da humanidade, que essa bandeira seja hasteada por cada vez mais gente, rumo a um futuro necessariamente comum.