sexta-feira, 31 de julho de 2009

Cunhal por Saramago

Contra o hábito, hoje não sou eu que escrevo aqui. O texto que se segue é de José Saramago e foi re-publicado, com algumas nuances inéditas, hoje (a sua versão original surgiu na revista Pública em 2003, ainda Álvaro Cunhal vivia), no DN. Para ler e recordar. Sempre...

ÁLVARO CUNHAL

Não foi o santo que alguns louvavam nem o demónio que outros aborreciam, foi, ainda que não simplesmente, um homem. Chamou-se Álvaro Cunhal e o seu nome foi, durante anos, para muitos portugueses, sinónimo de uma certa esperança. Encarnou convicções a que guardou inabalável fidelidade, foi testemunha e agente dos tempos em que elas prosperaram, assistiu ao declínio dos conceitos, à dissolução dos juízos, à perversão das práticas. As memórias pessoais que se recusou a escrever talvez nos ajudassem a compreender melhor os fundamentos da raquítica árvore a cuja sombra se recolhem hoje os portugueses a ingerir os palavrosos farnéis com que julgam alimentar o espírito. Não leremos as memórias de Álvaro Cunhal e com essa falta teremos de nos conformar. E também não leremos o que, olhando desde este tempo em que estamos o tempo que passou, seria provavelmente o mais instrutivo de todos os documentos que poderiam sair da sua inteligência e das suas finas mãos de artista: uma reflexão sobre a grandeza e decadência dos impérios, incluindo aqueles que construímos dentro de nós próprios, essas armações de ideias que nos mantêm o corpo levantado e que todos os dias nos pedem contas, mesmo quando nos negamos a prestá-las. Como se tivesse fechado uma porta e aberto outra, o ideólogo tornou-se autor de romances, o dirigente político retirado passou a guardar silêncio sobre os destinos possíveis e prováveis do partido de que havia sido, por muitos anos, contínua e quase única referência. Quer no plano nacional quer no plano internacional, não duvido de que tenham sido de amargura as horas que Álvaro Cunhal viveu ainda. Não foi o único, e ele o sabia. Algumas vezes o militante que sou não esteve de acordo com o secretário-geral que ele era, e disse-lho. A esta distância, porém, já tudo parece esfumar-se, até as razões com que, sem resultados que se vissem, nos pretendíamos convencer um ao outro. O mundo seguiu o seu caminho e deixou-nos para trás. Envelhecer é não ser preciso. Ainda precisávamos de Cunhal quando ele se retirou. Agora é demasiado tarde. O que não conseguimos é iludir esta espécie de sentimento de orfandade que nos toma quando nele pensamos. Quando nele penso. E compreendo, garanto que compreendo, o que um dia Graham Green disse a Eduardo Lourenço: "O meu sonho, no que toca a Portugal, seria conhecer Álvaro Cunhal." O grande escritor britânico deu voz ao que tantos sentiam. Entende-se que lhe sintamos a falta.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

A Coligação de António Costa

Ao reflectir sobre o cenário eleitoral em torno de Lisboa, e sobretudo após ter analisado os nomes que António Costa tem captado para a sua trincheira, assalta-me o medo de voltar a ver, de novo, a minha cidade tomada por santanistas e santanetes. Na verdade, e independentemente da acção do PS enquanto governo, a única solução para evitar que o poder na autarquia lisboeta volte, mais uma vez, às mãos de Santana Lopes e seus pares perfilar-se-ia numa ampla coligação de esquerda, envolvendo o PCP e o BE. Sem rodeios, e presumindo que o mais importante de tudo é a cidade e, consequentemente, os lisboetas, tal coligação apresentava-se como um imperativo.
Infelizmente, e conforme se pode ler nos jornais, a presumível coligação de esquerda que parece ter estado na agenda de António Costa tornou-se inviável esta semana. Não sei em que termos o aparelho lisboeta do PS colocou as pedras no tabuleiro mas, após quase dois anos de mandato, presumo que talvez assista alguma razão à esquerda que recusou o acordo. Independentemente das candidaturas de Ruben de Carvalho (CDU) e Luís Fazenda (BE) estarem no terreno, creio que o medo do “cataclismo” santanista seria só por si uma forte razão para este avanço em bloco das forças de esquerda que, como se sabe, representam a maior tendência eleitoral na capital. Porém, Costa e o PS têm tido posições pouco consentâneas com a defesa de interesses inalienáveis a uma verdadeira política de esquerda para a capital. E tudo isso reflectiu-se agora, independentemente das estratégias eleitorais dos partidos perante uma calendarização de brutal exigência.
De facto, ao promover intenções claras de privatização de serviços nevrálgicos da autarquia - como a recolha de lixo ou, agora, a manutenção de espaços verdes -, ao ter sido impelido pelo movimento sindical e pela luta dos trabalhadores a recuar quanto à intenção de despedir centenas de falsos recibos verdes, ao tomar a posição que tomou na “guerra” dos contentores de Alcântara, ao ignorar a degradação constante da vida dos cidadãos na cidade por via da falta de uma visão estratégica com efeitos no terreno (apesar de uma série de processos delineados como a Carta Estratégica, o simplis ou o “pagamento a tempo e horas”), António Costa mostrou, em dois anos de mandato, muito daquilo que o separa de uma efectiva solução política de esquerda. Uma coligação agora, e neste cenário, soaria a utilitarismo puro e simples, ainda mais quando provavelmente se pretendesse incluir José Sá Fernandes ou Helena Roseta como representantes “independentes” dessa ampla coligação à esquerda.
Após o desenlace anunciado à partida, a António Costa restará ir a votos acompanhado de Sá Fernandes e, com toda a probabilidade, Helena Roseta. Sá Fernandes significará uma incógnita em termos eleitorais uma vez que, aprofundando a análise em torno do que tem sido o seu mandato enquanto vereador, poderá retirar mais votos do que aqueles que conseguirá captar. Além do mais, Santana Lopes será o primeiro a apontar Sá Fernandes como um dos principais responsáveis pelo descalabro da sua gestão enquanto edil da cidade. Em sequência do embargo ao túnel do Marquês de Pombal, a personagem de Sá Fernandes fornece a Santana uma arma de peso na campanha; é preciso não esquecer que se está perante um político hábil no uso e abuso de argumentos de vitimização, servindo estes tanto para as lutas internas do PSD como para as externas, conforme o seu percurso tem demonstrado.
Ao tentar Helena Roseta como aliada, Costa tenta estancar mais fragmentação à esquerda. Diz-se que as relações entre os dois não são propriamente uma lua-de-mel, sobretudo porque a ex-deputada do PS tende a fazer-se valer da eventual mais-valia que representam os votos presidenciais de Manuel Alegre nas Presidenciais de 2006, logo pretendendo assumir um maior protagonismo no futuro executivo camarário. Na verdade, esta ambição poderá não parecer assim tão disparatada uma vez que o resultado de Roseta nas “intercalares” de 2007 foi relevantemente expressivo (superior mesmo a PCP e BE). Mas, após tanta inconsequência ao longo do mandato, será caso para questionar o que valerá actualmente Helena Roseta na escolha dos eleitores lisboetas.
Perante tudo isto, eu lamento! Lamento que a tão ansiada coligação de esquerda que outrora foi, apesar de tudo, uma experiência altamente positiva para Lisboa (com certeza a última até ao momento!) não seja possível de reeditar. Lamento que António Costa não represente uma solução de consenso à esquerda e por isso se veja reduzido a uma coligação com “independentes”, seja lá qual for o significado político da expressão (pelo menos em Portugal). Assim, quem fica a ganhar é aquilo que ultrapassando o epíteto da direita representa o pior lado da política portuguesa. Por tudo isto, eu lamento, e só me ocorrem as palavras do meu malogrado amigo Gracindo Neves que não se cansava de dizer “este povo não tem memória, só uma vaga ideia”.