domingo, 28 de março de 2010

Ali na Grécia, como aqui...

Para salvar o sector financeiro os Estados passaram cheques em branco. Com o dinheiro dos contribuintes! Hoje, a banca, braço do poder financeiro e sector charneira da crise, recuperou e assume-se com uma renovada força contra os Estados. E aí estão, os banqueiros saqueando-nos, seja pelas artimanhas do mercado, seja pela voracidade especulativa! Ali na Grécia, como aqui…
Reportemo-nos aos factos. O Goldman Sachs ajudou a Grécia, em segredo, a obter crédito no valor de milhares de milhões de euros. Depois, para contornar as sempre dúbias regras europeias que limitavam o nível da dívida pública, a firma de Wall Street aconselhou o governo de Atenas a recorrer a engenhosos artifícios contabilísticos e financeiros. Como resultado, a factura destes estratagemas adensaram a volumosa dívida grega. Num vergonhoso jogo de “quem ganha, quem paga”, um tal de Lloyd Blankfein, presidente da Goldman Sachs, recebeu um bónus de cerca de 10 milhões de dólares. E o resultado para os trabalhadores gregos resume-se à perda do equivalente anual a um mês de salário. Ali na Grécia, como aqui…
A Grécia parece estar agora nas mãos do governador do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, e não é estranho que este arauto da economia de mercado venha apelar à “vigilância intensa e quase permanente” da União Europeia. Ou seja, a Grécia vai ser forçada a renunciar à sua soberania económica para diminuir o défice de 12,7 por cento do produto interno bruto (PIB) em 2009, para 3 por cento em 2012. Ali na Grécia, como aqui…
Receita proposta pelo “socialista” primeiro-ministro: desvalorização dos salários da função pública em 10%; aumento da idade da reforma para os 67 anos; flexibilização das leis laborais e consequente incremento do trabalho precário e da liberalização dos despedimentos; extensão dos baixos salários a sectores cada vez mais vastos; continuação da privatização dos bens e serviços públicos. Ali na Grécia, como aqui…

segunda-feira, 22 de março de 2010

Alma Russa

Anton Tchekhov definiu, um dia, a essência da sua obra do seguinte modo: “Queria apenas dizer a todos, com honestidade e franqueza: observai-vos próprios, vede como é detestável e aborrecida a vida que levais! O mais importante é fazer com que os homens compreendam isto, pois caso aconteça hão-de criar, necessariamente, uma vida diferente, uma vida melhor”. Mergulhando no mundo de Nicolai Ivanov, um pequeno proprietário rural endividado, compreende-se que a angústia domina toda a sua existência. A mulher sucumbe à tuberculose e aqueles que o rodeiam vivem uma vida fútil, engrenada em pequenos vícios e ocasionais vigarices.

Nada na vida de Nicolai Ivanov parece significar luz ou redenção, nem a dedicação da mulher enferma que tudo sacrificou em prol do amor, nem a paixão secreta acalentada pela filha dos endinheirados Lebedev; a salvação de Nicolai já não é terrena porque tudo se resume à sua desesperada aclamação “Atormento-me! Toda a gente me atormenta”. Como se o caminho se definisse numa espiral de acontecimentos que fazem antever a tragédia em que culminará a sua vida. Nicolai está consumido pela culpa, perseguido por fantasmas alimentados numa consciência em crise, como alguém que, como ele próprio diz, se sente “esmagado pelos seus actos inúteis”.


excerto do texto publicado na Lisboa Cultural 153 - Ivanov está em exibição, até 27 de Março, no Teatro Municipal Maria Matos