terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Angel City

Deserto de Almas

A dramaturgia de Sam Shepard regressa aos palcos da capital com Angel City, numa produção d´A Barraca, encenada por Rita Lello. Uma comédia negra acerca da Hollywood dos grandes estúdios, que propõe uma reflexão inquietante sobre as fragilidades da condição humana.

Apesar de escrito na década de 1970, e ser considerada uma peça menor no reportório do dramaturgo norte-americano Sam Shepard, Angel City parece ter ganho com o passar do tempo uma dimensão muito mais premente do que aquela que lhe foi reconhecida à época. Como parábola ao poder que de cima se impõe aos seus súbditos, a acção da peça desenrola-se numa penthouse sobre a “cidade dos anjos”, onde numa grande janela (ou tela de cinema) se projectam imagens povoadas por personagens aprisionadas nas suas próprias ambições, quase despojadas de identidade, que funcionam como “amostra de uma sociedade voraz e autofágica”, o que, nas palavras da encenadora Rita Lello, confere ao texto de Shepard uma “radical universalidade”.
Numa análise focalizada, a peça é um olhar corrosivo ao modo depredador como os grandes estúdios de Hollywood exercem as suas lógicas de mercado sobre os argumentistas, afectando “uma forma de arte legítima” [Sam Shepard] como é a escrita para cinema. Algo que hoje, perante todos os vícios da produção de filmes em Hollywood, parece ganhar uma ainda mais evidente actualidade. Num sentido mais lato, Angel City propõe uma reflexão sobre as vicissitudes do processo criativo perante a incapacidade de resistência humana ao desejo de dinheiro e poder.
As personagens são prisioneiras das suas próprias ambições, subjugadas ao poder de Wheeler, um empresário da indústria de cinema, que não se coíbe em afirmar “Eu sou o negócio, Eu estou no cinema; Eu planto imagens nas cabeças das pessoas… eu espalho-lhes a doença; Eu tenho esse poder”. Aparentemente longe de se deixar engolir pelo deserto de valores que rodeia Wheeler (Ruben Garcia) e os seus acólitos, Rabbit Brown (Sérgio Moras), um jovem argumentista fora do “sistema”, é desafiado a salvar um filme que personifica toda a ambição desmedida do empresário. A grande dúvida é saber até quando o artista conseguirá suportar as suas próprias fragilidades e não sucumbir à irresistível avidez do poder.


foto de João Carvalho

artigo publicado na edição 193, de 3 de Janeiro de 2011, da Lisboa Cultural

domingo, 5 de dezembro de 2010

A reserva moral da Nação e as opções de classe

Os cenários de crise profunda têm quase sempre a virtude (e a tragédia) de revelar, com uma lucidez progressivamente impressiva, o estado de decrepitude em que os povos mergulham. Hoje, e no confronto com uma crise económica e financeira, clarificam-se opções pretéritas e, inevitavelmente, as suas repercussões acabam por pôr a nu a crise do regime político, a decadência moral das elites e o estado de insatisfação de um povo. Sem recusar o determinismo histórico e as consequências futuras desta conjuntura, parece ser cada vez mais evidente que a verdadeira crise está agora a impor-se e que as suas réplicas vão progressivamente fazer cair as máscaras nos tempos próximos, o que conduzirá necessariamente à mudança e à ruptura. Mas, isso levar-nos-ia por um outro caminho que aqui não se pretende, para já, explorar.
A crise portuguesa ainda não está integralmente interiorizada, independentemente da percepção cada vez mais flagrante de que a nossa vida não mais voltará àquilo que foi nos últimos anos. Os sinais são evidentes, até no discurso popular e nas manifestações de insatisfação quase generalizada, demonstrada, a exemplo, de um modo activo na última greve geral ou até nesse preocupante e explosivo estado de anomia em que os portugueses parecem submergir, mesmo quando são atacados por todos os lados. Até porque, à semelhança dos santos com pés de barro, também o regime vai tentando criar representações que incorporem uma reserva moral para resistir e manter no silêncio das “inevitabilidades” uma legitimação popular. Precauções, antes que estale e se esboroe em mil pedaços, em nome de evidentes opções de classe.
A actual reserva moral da Nação, segundo os fazedores de opinião do País, é bem sintomática do estado de decadência deste nosso povo peninsular. O seu nome é Aníbal Cavaco Silva, ex-Ministro das Finanças, ex-Primeiro Ministro, actual Presidente da República e, uma vez mais, candidato a Chefe de Estado para que, imagine-se o desplante, continue a fazer com que as coisas não fiquem pior do que estão. Para se ser esta “reserva moral” em quem os portugueses confiam é necessário que o santo pareça autêntico e que as décadas de responsabilidade na governação do País se tornem matéria de mistificação, conduzindo mesmo a personagem à negação daquilo que efectivamente é: o político profissional português com mais anos em cargos públicos de relevância executiva e governativa.
Perante a encarnação em Cavaco Silva da figura de inevitável “reserva moral da Nação”, é difícil não sentir que o País se encontra numa crise ainda mais profunda do que aquela que os dados da economia apontam. A nossa própria tendência sebastianista na espera daquele que nos guia, leva-nos a perdermo-nos no nevoeiro enleante que resguarda quem obrigatoriamente devíamos reconhecer. E, esta acaba por ser a maior tragédia deste povo, mesmo em tempos de crise. Cavaco Silva aparece nas sondagens como vencedor das Presidenciais do próximo ano logo à primeira volta, e toda uma máquina de propaganda eficazmente oleada, branqueia com uma impunidade imoral as suas responsabilidades, como se debaixo daquilo que diz não poder controlar tivesse as mãos limpas. Como as de Pilatos, acrescentaria.
A classe que aposta em Cavaco Silva e arrasta os portugueses com ela personifica este inefável e destrutivo “centrão” que corrói Portugal. A reserva moral que elegeram é a mesma que, impávida e serena, ataca o povo português com a austeridade e não age quando se procura justiça e equilíbrio nos sacrifícios pedidos perante as ameaças externas, personificadas pelo grande capital financeiro internacional e pelo directório de interesses que domina a União Europeia. É um autêntico mundo ao contrário, onde ninguém ousa julgar à luz da lei a redução de salários nem os milhares de despedimentos fraudulentos, mas que brada um aqui d´el rei se os “princípios jurídicos” forem violados na taxação de milhões de euros aos accionistas das grande empresas.
A opção de classe – e, importa nestes tempos difíceis não temer o uso de termos que, efectivamente, se procuraram diluir na espuma das decadentes sociais democracias europeias – ficou bem vincada na última quinta-feira, no Parlamento, quando uma proposta do Partido Comunista Português, visando penalizar o estratagema usado pelas maiores empresas nacionais cotadas em bolsa na antecipação da distribuição de dividendos aos accionistas, foi chumbada. Com a anuência dramática da bancada do Partido Socialista (foram precisas hábeis jogadas de bastidores, e até mesmo a chantagem, para que a proposta não fosse votada favoravelmente), a fuga ao fisco de milhões e milhões de euros foi legitimada, mascarada prontamente com as opiniões dos seus fazedores nas fronteiras da legitimidade do ordenamento jurídico tributário vigente em Portugal.
Miséria de imprensa
O caso do chumbo à proposta do PCP foi louvado em Editorial, na edição de sexta-feira do jornal Público. Intitulado “A lei é dura, mas não deixa de ser lei”, começa com um lead bem elucidativo da manobra de legitimação do sentido de voto da direita parlamentar, constituída por PS, PSD e CDS: “Mais importantes do que os valores morais, o que deve ser atendido na antecipação dos dividendos é a lei”. O texto prossegue aflorando o conflito entre “uma certa visão da moral pública e o primado da lei num Estado de Direito”, conduzindo o leitor para a imperiosa necessidade da “universalidade da lei e da igualdade dos cidadãos face às suas imposições”. Para concluir, podemos ler uma frase bem à medida do beijo à mão do dono (por acaso o Grupo Sonae): “Pode não ser a solução mais simpática num país onde a maioria dos cidadãos foi condenada a perder rendimento; mas qualquer iniciativa legal feita à medida para a travar poderia ter ainda efeitos mais nefastos”.
No seu estilo de ultra-liberal ressabiado, o antigo director do mesmo jornal, José Manuel Fernandes assina, numa pequena caixa, o seu contentamento face ao chumbo da proposta comunista, tido como uma boa notícia porque “por mais popular que fosse a proposta – em Portugal é sempre popular taxar os supostos ricos a torto e a direito… –, ela corresponderia à violação de um princípio básico de estabilidade do quadro legal fundamental ao exercício de qualquer actividade económica”. Numa analogia ao grupo económico do patrão, Fernandes remata: “porque a decisão de taxar os dividendos das SGPS é idiota e só as levará a mudarem as suas sedes para outros países, nomeadamente para a Holanda”.
O que não deixa de ser interessante nesta incondicional defesa dos princípios jurídicos do Estado de direito pela parte dos jornalistas que assinam estas colunas é o artigo da página 3 daquela edição do Público. Ali pode ler-se num antetítulo que os “Fiscalistas (estão) divididos sobre tributação” logo, as conclusões tão conclusivas do editorial do jornal e do “opinador” Fernandes parecem enfermar em excesso de zelo. Independentemente disso, o que interessa realçar é que com uma conivência imoral da nossa miserável imprensa, a moral pouco importa nestas questões. Noutras, nomeadamente naquelas que têm a ver com direitos de trabalhadores, o debate nunca atinge este nível de veemência na defesa do Estado de direito e nos princípios de defesa do ordenamento jurídico português.
Fica a dúvida para os portugueses se, perante uma indesmentível opção de classe por parte da direita parlamentar, a “reserva moral” da Nação não deveria ter uma palavra clara a dizer. Ou não fosse ela, segundo se diz, o próprio Presidente da República.