domingo, 20 de junho de 2010

José Saramago


16 de Novembro de 1922 – 18 de Junho de 2010

Por ocasião dos noventa anos de Álvaro Cunhal, José Saramago publicou, na revista Pública, um texto em que falava sobre o “sentimento de orfandade que nos toma” quando pensamos em figuras da grandeza do líder histórico do PCP. Na passada sexta feira, pela hora de almoço foi a vez do próprio Saramago fazer encarnar esse sentimento de orfandade naqueles que o liam e desejavam continuar a lê-lo. Saramago morreu. Deixou de aqui estar.
Apesar de ser público que o escritor se encontrava doente e extremamente debilitado, foi impossível contornar aquele abalo invisível de quem prefere pensar que há homens que nunca morrem. Eu fui um desses. Um entre milhares, provavelmente!, que se sentiram trespassados por esse anuncio violento que os fez inanes. O sentimento de orfandade, carregado de um pesado vazio, entre a comoção e o desejo de evasão do momento, como se me falhasse um familiar ou um amigo próximo.
Saramago acompanhou (e continuará a acompanhar) muitas horas da minha vida com o seu maior legado: os livros. Vi-o, pessoalmente, penso que por duas vezes, ambas na Festa do Avante!, ainda antes do Prémio Nobel. O único livro que me autografou está aqui a meu lado, recordando-me perfeitamente estar a viver a ressaca de “O Ano da Morte de Ricardo Reis” quando se deu o encontro que resultou neste autógrafo - eu que não cultivo autógrafos nem superava a timidez perante quem tanto admirava.
Encontro num velho caderno da época (a que chamo “diário”) a narração do momento: reparei na presença do autor, comprei o livro e depois dirigi-me a Saramago com um conselho pueril, do tipo “Nunca deixe de escrever”, enquanto colhia na segunda folha, a tinta azul, uma breve mensagem – “a Frederico, com a simpatia de…”. Felizmente, demoraram muitos anos para que Saramago deixasse de escrever e aquele autógrafo único na minha biblioteca viria a ser a marca de um Nobel. A partir daí, colher um autógrafo de Saramago passou a significar horas de espera e não mais me cruzei presencialmente com o escritor.
Olhando para trás, talvez o Saramago escritor tenha deixado de ser tão interessante a partir do momento em que ganhou o Nobel. O Saramago cidadão (do mundo, ibérico sobretudo), esse sim, cresceu, libertou-se ainda mais, como se se soltasse. Tornou-se indomável, e se nem sempre com ele conseguíamos concordar, sabíamos que ali permanecia uma voz constante e interventiva desta pátria decadente, por mais que o acusassem de quase tudo. Portanto, com a morte de José Saramago, não se perde só o escritor de língua portuguesa mais notabilizado no mundo, perde-se também mais uma das “nossas” reservas morais. E isso, nos dias que correm talvez seja ainda mais trágico.
No final do polémico e controverso “Caim”, o seu último romance publicado, lê-se “A história acabou, não haverá nada mais que contar”. Duvido que assim seja, mas aquela foi, de facto, a última história que Saramago nos contou. Porque agora sim, parou de escrever.
foto: Fundação José Saramago

sexta-feira, 4 de junho de 2010

A Crise e os seus Artífices

A crise embala e chega ao país da crise perpétua, Portugal. Até porque apesar de poder ser, o ano nem sequer é de eleições. Rebuçados que sabem a presente envenenado, do tipo aumentos acima da inflação a funcionários públicos em ano de botar voto ou descidas subtis do IVA, servem para enganar papalvos e fazer render as más argumentações. Tem-se visto quando, por a mais b, a economia, essa ciência que lembra ocasionalmente a meteorologia mas com maior propensão de erro, vai dando indicações por encomenda e aponta o rumo certo para fazer pagar aos do costume o saque e o disparate.
Não é difícil elencar os artífices da desgraça, apesar do holofote se colocar quase sempre sobre os actores em palco. Sem absolver esses futuros beneficiários do mundo dourado da política portuguesa, lembro que Constâncio é hoje um dos vice-presidentes do Banco Central Europeu. Sampaio e Guterres gozam uma reforma dourada em instituições supranacionais de cosmética ético-política. Durão finge comandar ao longe a esburacada nau europeia. Depois há outros, os que brincaram à raspadinha da política nacional e descobrem o caminho da fortuna; o elenco é frondoso como uma árvore de patacas (muitas patacas!) e inclui criaturas como Jorge Coelho, Dias Loureiro, Cardoso e Cunha, Armando Vara, os fabulosos economistas da escola cavaquista, os juriconsultos que patrocinam verdadeiros assaltos aos dinheiros públicos, e etc. Todos eles pairando, como deuses no Olimpo, acima da triste crise da ralé.
Cá em baixo, no fosso submerso da nebulosa dourada, estão esses, os que trabalham para viver, se levantam cedo para enfrentar o trânsito, se locomovem em transportes apinhados, correm para apanhar os filhos em escolas sofriveis e ainda dormem sobressaltados pelo medo de perder o emprego ou que dinheiro que ganham não chegue para as despesas mais elementares. São esses os párias que pagam a crise ininterrupta do País; são os contribuintes de um Estado que os traí, que usa parte dos seus rendimentos para engordar a vaca dos vizinhos ricos que por sinal andam há décadas a arquitectar o edifício da crise.
Eles existem. Eles mentem nas televisões e nos jornais todos os dias. Eles fazem esquecer os factos de antes de ontem para legitimar a necessidade da austeridade sobre a arraia miúda. Eles silenciam os casos de corrupção e abuso de poder no desempenho de funções públicas que dezenas ou centenas de políticos fizeram perpetuar até se banalizar. Eles ocultam quantos beneficiaram interesses privados em detrimento dos interesses públicos. Eles não assumem que a banca e os monopólios privados parasitam há anos este País e o seu povo. Eles evadem-se de apontar culpas aos que estiveram no BPN ou no BPP. Eles não reclamam a necessidade de haver uma justiça onde também haja culpados… Eles olham-se no espelho; e a crise é nossa.