sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Coppola

Hoje, em conversa com um amigo que esteve presente no Estoril aquando da apresentação de “Tetro”, o último filme de Francis Ford Coppola, ocorreu-me que numa lista prévia que fiz de “filmes da minha vida” (os quais dou eco num blogue ocasional com o mesmo nome) só incluía um único título do realizador norte-americano, “Apocalypse Now”. Equívoco meu, o qual depressa rectifiquei através de uma breve consulta a um sem-número de notas que dediquei a filmes de Coppola, da saga “O Padrinho” a “Drácula”, passando por “One From the Heart” ou “Os Marginais”. Filmes que inevitavelmente patrocinaram em tom aceso e flamejante o meu amor pelo cinema.
Coppola, que incoerentemente talvez, por circunstâncias errantes dos caminhos da cinéfilia e das modas instaladas cá pelo burgo, se tornou um autor algo negligenciado nos últimos anos, apresenta-se hoje, mais uma vez, como um nome incontornável da história da sétima arte, ao nível dos grandes mestres do cinema clássico norte-americano. Para isso bastou uma vinda a Portugal para um festival de cinema e toda a gente aclama este great director que deu estampa a alguns dos mais notáveis personagens do cinema moderno: Michael Corleone (Al Pacino), em “O Padrinho”; Coronel Kurtz (Marlon Brando) e Tenente Kilgore (Robert Duval), em “Apocalypse Now”; Leila (Nastassja Kinski), em “One From the Heart”; Motorcycle Boy (Mickey Rourke), em "Rumble Fish"; Conde Dracula, em “Dracula”. São apenas parte de um elenco de personagens que me vincam a memória e me levam a considerá-lo, com a maior das reverências, um dos maiores realizadores da história do cinema.
Mas nem só de grandes personagens se compreende o cinema de Coppola. Este ítalo-americano de Detroit que fez um punhado de obras-primas ao longo da sua carreira, custeando em prol da arte suprema a sua própria sanidade e a sua sustentação financeira, e que hoje promove os seus filmes mais ou menos experimentais a custas da vinicultura produzida nuns largos hectares californianos, produziu cenas arrebatadoras que assaltam forçosamente o nosso imaginário cinéfilo. Daquela história de amor maior que a vida, numa Las Vegas imaginada em decors de néon, de “One From the Heart” à abertura operática de uma selva a eclipsar-se sob um bombardeamento ao som de “The End”, dos Doors ,nessa demência permanente que foi, e é, “Apocalypse Now”, ou ao desespero silencioso de Michael Corleone a amparar a filha assassinada na escadaria da Ópera de Palermo, em “O Padrinho III”. Três singelos exemplos de arte maior que, como uma dádiva suprema, Coppola registou para a posteridade.
Fez-me bem falar hoje sobre Coppola. Deu-me vontade de agarrar nuns quantos dvds que espreitam das prateleiras lá de casa e dedicar-me a rever muito deste grande cinema. Ainda mais porque, em Coppola, como nos grandes mestres italianos ou em alguns contemporâneos de excepção como Scorsese ou Lynch, se encontram sempre motivos superiores para justificar a mais atenta das revisões. E, enquanto o tempo não me permite uma saltada obrigatória ao King para espreitar este “Tetro”, arrisco a respirar alguns dos filmes da minha vida, como o já citado “Apocalypse Now” (a versão “redux” potencia ainda mais a experiência) ou esse musical único e, ainda hoje, surpreendente que é “One From the Heart”.

sábado, 14 de novembro de 2009

Caindo de Podre

Os mais cépticos quanto à Revolução de Abril – alguns dos quais longe de serem apologistas do salazarismo – apontam muitas vezes que o 25 de Abril foi resultado do estado de decadência do regime, ou seja, “o regime caiu de podre”. Na verdade, a história nunca é tão linear quanto as tentações que regularmente nos levam a conjecturar e afirmar as certezas mais certas, logo, esta afirmação enferma no simplismo se não encontrar troços mais alargados para se sustentar. Não há propriamente sentidos únicos na história, sobretudo quando tratamos a contemporaneidade e nos envolvemos mais com os vivos que com os mortos. Portanto, há inúmeras vias para explorar e desenvolver o assunto, sem retirar ou subestimar seja qual for a perspectiva de análise e grau de distanciamento dos factos.
Olhando para as mais diversas leituras que foram feitas sobre o fim do Estado Novo, é justo percebermos que, para além de outros factores mais complexos, o regime estava de facto “podre” e isso proporcionou a conjuntura favorável ao golpe que desencadeou a transição para a democracia. No fundo, este fenómeno histórico tinha que acontecer naquele momento porque as fraquezas do poder eram cada vez mais evidentes, sobretudo pelos efeitos da guerra. Em oposição, poderemos fazer a comparação com o que se passou no pós-guerra, logo a seguir a 1945, quando os ventos que sopravam eram favoráveis à mudança, com a derrota do nazismo e do fascismo, e no povo português se desenhava uma explícita vontade de pôr fim à ditadura. Porém, nessa época, o regime teve capacidade de responder e frustrar (através dos recursos mais abjectos e desumanos à mercê de um Estado policial e repressivo) a vontade popular.
Há uns anos atrás, num seminário de investigação em que os oradores compunham um séquito dos mais notáveis da academia portuguesa, daquela que escreve regularmente nos jornais e aparece na televisão e teima em dourar a investigação social com intrincados processos metodológicos e números complexos ao serviço da ciência, considerava-se que a democracia portuguesa era já suficientemente adulta para estar absolutamente consolidada. Num ímpeto intervim, questionando o painel se isso significava uma espécie de fim da história, aventando a hipótese de estarmos de tal forma seguros da nossa democracia que nada a poderia prostrar, independentemente da integração em instituições supra-nacionais, como a União Europeia e a NATO.
Como é evidente, nem estávamos no fim da história – a tese fez, nos últimos anos, furor com Fukuyama mas depressa se revelou um logro – nem nenhum regime se consolida tão solidamente que não possa ser derrubado ou (recuperando a tese do “regime que cai de podre”) derrubar-se por si mesmo, independentemente das estruturas supra-nacionais às quais pertencemos. Estando completamente de acordo com a resposta à minha inquietação, senti que o sentido dado procurava um equilíbrio mais científico que racionalmente hipotético, como se não devêssemos sequer equacionar que mesmo as mais evoluídas democracias podem um dia ceder. Até porque esses factores externos, essa espécie de guardiões supra-estatais que mantêm a ordem e vigiam o sistema político do ponto de vista da manutenção do regime mais favorável ao concerto dos Estados membros, podem também falhar. Num resumo, a história anuncia que a democracia, como qualquer outro regime, não será perpétua; a vontade, por mais hipotética que se revele, procura que esta democracia o seja.
Apesar de condicionantes e variáveis de diversa ordem, é ponto assente que qualquer modelo de democracia se constrói permanentemente; é insuficientemente inacabado na medida em que exige dos cidadãos esforços que as paternalistas ditaduras arrancadas à história jamais poderiam conceber. E, assim, chegamos a um ponto fulcral: a construção permanente da democracia como sinal da sua própria consolidação, partindo do princípio quase unânime de que o poder do povo e pelo povo é mais frágil do que qualquer outro, sobretudo se o povo não entender que é ele, mais que uma entidade abstracta colectiva, quem deve comandar, sem limitar apenas ao voto esse mesmo poder. Viveremos então numa democracia?
O politólogo norte-americano Robert Dahl classificou o que, regularmente, denominamos de democracias de modelo liberal como poliarquias. O que, e de forma muito sucinta, compreende os regimes nos quais o poder se estratifica em múltiplos pontos dispostos horizontalmente, permitindo que, em igualdade de circunstâncias, haja disputa política por grupos plurais e em que a base de participação política é significativamente alargada. Para a maioria dos estudiosos, o modelo de democracia predominante no ocidente é este uma vez que ele reflecte, aparentemente, o modelo norte-americano.
Num aparte, explico o uso do “aparentemente”, porque as democracias (poliarquicas ou em vias de o ser), à semelhança dos regimes ditatoriais, vivem também de aparências e manipulações constantes, sendo duvidosas as estratificações horizontais do poder quando nos confrontamos com factos e dados concretos. Divergem sim, e isso é unânime, nos métodos e nas formas como o Poder constrói as suas formas de legitimação. Talvez por isso, existe a perspectiva de se cultivar formalmente nas poliarquias a figura da separação de poderes, que serve para legitimar opções e actos concretos do sistema político e empreende, com o sufrágio e a liberdade de expressão, a imagem mais vincada de um regime democrático.
Voltando à poliarquia e centrando a análise na observação do caso português, depressa nos apercebemos que enfermamos de igualdade de disputa política (como quase todas as poliarquias do mundo, sobretudo a mais poderosa, os EUA) e ainda mais desigualdades na participação dos cidadãos, seja por uma deficitária cultura cívica, seja por bloqueios geridos pela efectiva partidocracia que caracteriza a sociedade portuguesa. A imperfeita democracia portuguesa (insuficientemente poliarquica, apesar da institucionalização de grupos de pressão e de inúmeros grupos de interesse que apostam na invisibilidade ao contrário do lobbie à maneira anglo-saxónica) esboroa-se agora no rotundo falhanço do seu sistema de separação de poderes e na perversa ligação que envolve os poderes políticos, económicos e judiciais. Este falhanço contamina permanentemente a consolidação do regime democrático, minando a sua credibilidade e a sua continuidade, como se tal pudesse significar um argumento de erosão acelerada do regime.
Enfrentando para além de uma crise externa, uma crise económica estrutural causada em larga medida pela delapidação dos recursos por parte de grupos ligados aos poderes ou a segmentos do próprio poder político executivo, Portugal perfila-se como um novo desafio ao estudo dos fenómenos políticos. Se os politólogos americanos enalteceram o pioneirismo português naquilo que denominaram a terceira vaga de democratização, hoje, pelas falhas estruturais nunca superadas e pelas deficientes supra-estruturas que os agentes políticos erigiram ao longo destes 35 anos, talvez seja caso para questionar se Portugal não poderá vir a tornar-se, de novo, pioneiro num outro sentido. À imagem do velho e tacanho regime que o antecedeu, não estará este também caindo de podre?

sábado, 7 de novembro de 2009

O Emprego Certo

Recordo perfeitamente, no dia em que apresentei a minha dissertação de licenciatura, que após o descomprimir do momento fiquei à conversa com os meus avaliadores. O mais velho, um destacado catedrático da praça, não teve qualquer recato em afirmar que o melhor veículo para garantir um emprego certo é, definitivamente, um partido político. E, numa sinceridade espontânea, acrescentou que se fosse jovem admitiria a filiação em qualquer um para se assegurar, sugerindo-me um lacónico "pense nisso".
Ao longo dos meus anos de vida profissional no sector público acabei por entender a evidência dessas palavras. Conheci gente de todos os quadrantes políticos e até vi o cartão de um partido resguardar da ameaça do despedimento, mesmo sendo o “poder” do contra. Ali estava a garantia do emprego certo que o catedrático falava, ainda mais porque, efectivamente, aconteceram uns tantos despedimentos "apartidários".
Hoje, ao folhear um jornal, deparo com a indignação (legítima) da oposição na Câmara Municipal de Loures ao presidente, razão pela qual recordo este episódio. Ao que se apurou, o presidente eleito pelo PS nomeou, para o seu gabinete, a filha e o cunhado, alegando a independência da escolha imanente a um cargo de assessoria que requer a máxima confiança pessoal. Nepotismo, aliado aos interesses do partido, resumem o episódio.
Nada demais, na procura do emprego certo e garantido, e de gravidade menor se olharmos para outros processos bem mais complexos. Eu, permitam-me, considero-o um episódio imoral e sintomático de uma crise profunda dos valores da res publica. Infelizmente, é um entre muitos por esse país fora.

domingo, 1 de novembro de 2009

O Talentoso Senhor Vara

Consta que de Armando Vara, José Sócrates disse um dia ser vítima de “inveja social”. É um conceito interessante, sobretudo quando todos sabemos ser Portugal um país de “invejosos”. E para não sair do padrão, há que reconhecer que o Senhor Vara tem sido alvo de muitas invejas ao longo da sua meteórica carreira política e “empresarial”, compreendida entre a distrital do PS de Bragança e a administração do maior banco privado português.
Olhando para o currículo do Senhor Vara, e cruzando esse currículo com as inúmeras notícias associadas ao seu nome, basta perdermos o sentido da honestidade e da moral num ápice para nos assumirmos como “invejosos”. Quantos caixas de banco militantes de um partido não invejam aquele que um dia chegou a administrador do banco? E quantos militantes de um partido não invejam os seus companheiros que um dia se tornaram ministros ou secretários de Estado?
O Senhor Vara é um homem talentoso. Certamente, foi por todo esse talento que conseguiu palmilhar tantos degraus na carreira e hoje ser somente o vice-presidente do BCP. Dir-se-á que o Senhor Vara tem uma enorme queda para o negócio e, em Portugal, isso significa probabilidades de se cumprirem os sonhos mais almejados. Como é evidente, quando se cumprem, surgem as invejas de portuguesinhos medíocres que não passam de caixas de banco ou de meros militantes de base de um partido.
O caminho do talentoso Senhor Vara é tão romanesco como o título deste artigo. Isto, porque é um caminho contado pela “inveja social” da imprensa, voz de um povo de invejosos. O Senhor Vara passou de caixa de banco a político profissional, com António Guterres a fazer dele secretário de Estado da Administração Interna e, depois, seu ministro adjunto. É um percurso arrebatador, até que vêm os invejosos acusar o Senhor Vara de criar uma espécie de instituição fantasma - a Fundação para a Prevenção e Segurança - onde foi só fartar vilanagem. Provas? Zero, porque as invejas não conduzem à justiça, nem na terra nem no céu, ou não fosse um dos pecados capitais.
Quando o PS voltou ao poder, o talentoso Senhor Vara passou a ser administrador da Caixa Geral de Depósitos. «Grande emprego», bramiram os invejosos. E até se inventou por aí que na universidade onde o Senhor Vara cursava Relações Internacionais - a muito notada Independente onde o amigo e camarada Sócrates cursara Engenharia - tocaram sinos a rebate para que saísse a certidão de fim de curso, tida como essencial para que este homem de múltiplos recursos intelectuais assumisse o cargo na CGD. Nada mais que boatos invejosos, como o tempo sempre faz provar neste nosso Portugal.
Mas a campanha de “inveja social” não dá tréguas ao talentoso Senhor Vara. Uma alegada escuta policial envolve o vice-presidente do BCP numa tal de operação “Face Oculta”, baseada em alegados subornos a políticos e quadros de empresas de capital público. E assim, está feito o homem arguido num processo, com uma mão cheia de camaradas socialistas… Como se costuma dizer e redizer para as bandas do Largo do Rato, «é (mais) uma cabala para atingir o PS». E, acrescento, o talentoso Senhor Vara, que se torna recorrentemente um caso de polícia.