sábado, 14 de novembro de 2009

Caindo de Podre

Os mais cépticos quanto à Revolução de Abril – alguns dos quais longe de serem apologistas do salazarismo – apontam muitas vezes que o 25 de Abril foi resultado do estado de decadência do regime, ou seja, “o regime caiu de podre”. Na verdade, a história nunca é tão linear quanto as tentações que regularmente nos levam a conjecturar e afirmar as certezas mais certas, logo, esta afirmação enferma no simplismo se não encontrar troços mais alargados para se sustentar. Não há propriamente sentidos únicos na história, sobretudo quando tratamos a contemporaneidade e nos envolvemos mais com os vivos que com os mortos. Portanto, há inúmeras vias para explorar e desenvolver o assunto, sem retirar ou subestimar seja qual for a perspectiva de análise e grau de distanciamento dos factos.
Olhando para as mais diversas leituras que foram feitas sobre o fim do Estado Novo, é justo percebermos que, para além de outros factores mais complexos, o regime estava de facto “podre” e isso proporcionou a conjuntura favorável ao golpe que desencadeou a transição para a democracia. No fundo, este fenómeno histórico tinha que acontecer naquele momento porque as fraquezas do poder eram cada vez mais evidentes, sobretudo pelos efeitos da guerra. Em oposição, poderemos fazer a comparação com o que se passou no pós-guerra, logo a seguir a 1945, quando os ventos que sopravam eram favoráveis à mudança, com a derrota do nazismo e do fascismo, e no povo português se desenhava uma explícita vontade de pôr fim à ditadura. Porém, nessa época, o regime teve capacidade de responder e frustrar (através dos recursos mais abjectos e desumanos à mercê de um Estado policial e repressivo) a vontade popular.
Há uns anos atrás, num seminário de investigação em que os oradores compunham um séquito dos mais notáveis da academia portuguesa, daquela que escreve regularmente nos jornais e aparece na televisão e teima em dourar a investigação social com intrincados processos metodológicos e números complexos ao serviço da ciência, considerava-se que a democracia portuguesa era já suficientemente adulta para estar absolutamente consolidada. Num ímpeto intervim, questionando o painel se isso significava uma espécie de fim da história, aventando a hipótese de estarmos de tal forma seguros da nossa democracia que nada a poderia prostrar, independentemente da integração em instituições supra-nacionais, como a União Europeia e a NATO.
Como é evidente, nem estávamos no fim da história – a tese fez, nos últimos anos, furor com Fukuyama mas depressa se revelou um logro – nem nenhum regime se consolida tão solidamente que não possa ser derrubado ou (recuperando a tese do “regime que cai de podre”) derrubar-se por si mesmo, independentemente das estruturas supra-nacionais às quais pertencemos. Estando completamente de acordo com a resposta à minha inquietação, senti que o sentido dado procurava um equilíbrio mais científico que racionalmente hipotético, como se não devêssemos sequer equacionar que mesmo as mais evoluídas democracias podem um dia ceder. Até porque esses factores externos, essa espécie de guardiões supra-estatais que mantêm a ordem e vigiam o sistema político do ponto de vista da manutenção do regime mais favorável ao concerto dos Estados membros, podem também falhar. Num resumo, a história anuncia que a democracia, como qualquer outro regime, não será perpétua; a vontade, por mais hipotética que se revele, procura que esta democracia o seja.
Apesar de condicionantes e variáveis de diversa ordem, é ponto assente que qualquer modelo de democracia se constrói permanentemente; é insuficientemente inacabado na medida em que exige dos cidadãos esforços que as paternalistas ditaduras arrancadas à história jamais poderiam conceber. E, assim, chegamos a um ponto fulcral: a construção permanente da democracia como sinal da sua própria consolidação, partindo do princípio quase unânime de que o poder do povo e pelo povo é mais frágil do que qualquer outro, sobretudo se o povo não entender que é ele, mais que uma entidade abstracta colectiva, quem deve comandar, sem limitar apenas ao voto esse mesmo poder. Viveremos então numa democracia?
O politólogo norte-americano Robert Dahl classificou o que, regularmente, denominamos de democracias de modelo liberal como poliarquias. O que, e de forma muito sucinta, compreende os regimes nos quais o poder se estratifica em múltiplos pontos dispostos horizontalmente, permitindo que, em igualdade de circunstâncias, haja disputa política por grupos plurais e em que a base de participação política é significativamente alargada. Para a maioria dos estudiosos, o modelo de democracia predominante no ocidente é este uma vez que ele reflecte, aparentemente, o modelo norte-americano.
Num aparte, explico o uso do “aparentemente”, porque as democracias (poliarquicas ou em vias de o ser), à semelhança dos regimes ditatoriais, vivem também de aparências e manipulações constantes, sendo duvidosas as estratificações horizontais do poder quando nos confrontamos com factos e dados concretos. Divergem sim, e isso é unânime, nos métodos e nas formas como o Poder constrói as suas formas de legitimação. Talvez por isso, existe a perspectiva de se cultivar formalmente nas poliarquias a figura da separação de poderes, que serve para legitimar opções e actos concretos do sistema político e empreende, com o sufrágio e a liberdade de expressão, a imagem mais vincada de um regime democrático.
Voltando à poliarquia e centrando a análise na observação do caso português, depressa nos apercebemos que enfermamos de igualdade de disputa política (como quase todas as poliarquias do mundo, sobretudo a mais poderosa, os EUA) e ainda mais desigualdades na participação dos cidadãos, seja por uma deficitária cultura cívica, seja por bloqueios geridos pela efectiva partidocracia que caracteriza a sociedade portuguesa. A imperfeita democracia portuguesa (insuficientemente poliarquica, apesar da institucionalização de grupos de pressão e de inúmeros grupos de interesse que apostam na invisibilidade ao contrário do lobbie à maneira anglo-saxónica) esboroa-se agora no rotundo falhanço do seu sistema de separação de poderes e na perversa ligação que envolve os poderes políticos, económicos e judiciais. Este falhanço contamina permanentemente a consolidação do regime democrático, minando a sua credibilidade e a sua continuidade, como se tal pudesse significar um argumento de erosão acelerada do regime.
Enfrentando para além de uma crise externa, uma crise económica estrutural causada em larga medida pela delapidação dos recursos por parte de grupos ligados aos poderes ou a segmentos do próprio poder político executivo, Portugal perfila-se como um novo desafio ao estudo dos fenómenos políticos. Se os politólogos americanos enalteceram o pioneirismo português naquilo que denominaram a terceira vaga de democratização, hoje, pelas falhas estruturais nunca superadas e pelas deficientes supra-estruturas que os agentes políticos erigiram ao longo destes 35 anos, talvez seja caso para questionar se Portugal não poderá vir a tornar-se, de novo, pioneiro num outro sentido. À imagem do velho e tacanho regime que o antecedeu, não estará este também caindo de podre?

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