domingo, 16 de janeiro de 2011

O Amor e a Revolução segundo o jovem Brecht

Escrita nos finais da década de 1910, na ressaca da I Guerra Mundial e da Revolução Bolchevique na Rússia, Tambores na Noite é uma das primeiras peças escritas por Bertolt Brecht, à época tido como um poeta boémio, assaz leitor de Rimbaud, mulherengo e anarquista. Segundo testemunhos posteriores do autor, o texto foi tido como “um perfeito exemplo da vontade humana”, renegado pelo próprio alguns anos mais tarde por sentir que apenas o escrevera por necessidade de dinheiro.
Na verdade, Tambores da Noite (que, ao que se sabe, Brecht nunca encenou), foi um sucesso junto do público burguês, algo que o autor lamentava pelo motivo de que “aquelas pessoas que entusiasticamente me queriam vir apertar a mão eram precisamente o pacote de gente ao qual eu tinha desejado dar um murro na cara”. Como se o teor de uma peça que pretendia surtir o efeito de desmascarar “pecados mortais da pequena burguesia”, acabasse por atingir o público como balas de “um canhão que dispara miolo de pão”.
As motivações financeiras de Brecht manifestam-se, segundo o próprio, na introdução de uma história de amor que seria suficiente para suscitar o “interesse público”. Mas, a trama amorosa que serve de fio condutor a Tambores na Noite acaba por ser uma denúncia feroz, provavelmente imprevista pelo próprio autor e até pouco perceptível pelo público burguês que aclamara a peça à época da estreia.
Tendo como cenário a cidade de Berlim, aquando da revolta dos espartaquistas, em 1918, a história de amor que une a filha de uma família pequeno-burguesa, Anna Balicke (Sara Carinhas), ao noivo que se julgava morto na guerra, Andreas Kragler (Paulo Freixinho), é corrompida pela decadência dos hábitos burgueses, pejados de vícios privados e de insanáveis contradições, às quais Brecht não se coibe de fazer uma crítica impiedosa. O olhar sobre a moralidade burguesa acaba mesmo por encontrar uma vítima, Anna, uma personagem talhada para fazer do homem "não um objecto de uso comum mas sim um artigo de luxo barato".
Mas acaba por ser nessa mesma teia viciosa que rodeia Kragler – um anti-heroi brechtiano por excelência – no regresso à pátria (onde acaba engastado na revolta proletária e incerto dos seus sentimentos e motivações amorosas) que vai acabar por fazê-lo vacilar, preferindo ficar com Anna, mesmo sabendo-a grávida de outro homem. Como sublinhou Brecht em carta a George Grosz, aquilo que “interessava era obviamente a questão da posse” como algo que surge transversalmente aos hábitos burgueses e aos acessos dos proletários revoltosos, e que com algum cinismo se poderia resumir num famoso alerta proferido outrora pelo próprio: “Não se ponham com esse olhar tão romântico!”
Cumprindo a tradição do melhor Brecht que vai voltando a surgir nas salas portuguesas, a encenação de Nuno Carinhas, apesar de um ou outro excesso, propõe uma abordagem apurada a um texto onde é possível descortinar todas as características do teatro brechtiano, embora entroncadas numa estimulante dose de caos e incerteza. A imaginação faz-se elemento essencial num espectáculo onde, a par do “drama familiar e burguês contaminado pelo que se passa no exterior”, persiste o fascínio pela visão poética do jovem Brecht, como se na última cena (de uma beleza plástica notável), ao som de Innocent when you dream de Tom Waits, se encerrasse a síntese de todo um universo.
Versão integral do artigo publicado na edição 195 da Lisboa Cultural (17 de Janeiro de 2011) a propósito da estreia, em Lisboa, da produção do Teatro Nacional de Sâo João, no TNDM II.
Nota final: esta versão inclui, evidentemente, aspectos críticos que não surgem na versão publicada.