sábado, 13 de dezembro de 2008

Do Caís das Colunas...


Ontem, Lisboa viu-lhe devolvida, dez anos depois, o Caís das Colunas. Para os mais incautos ou desinformados, a longa ausência ainda poderia ser conjecturada pelos danos das marés do Tejo ou por uma qualquer outra fúria de uma natureza em revolta. Mas, o nosso Caís das Colunas foi privado de existir durante dez anos devido à mão humana e às suas obras espinhosas. Somando-se ao escabroso desses espinhos, essa tradição tão lusitana de deixar fluir o tempo para que cada obra seja como as de Santa Engrácia, tão emblemático local viu-se esquecer no vai vem do tempo. Até ontem, para fazer jus ao postal ilustrado da cidade.
Mas Lisboa é uma cidade devastada sem empresa de terramoto ou de qualquer outro devastador fenómeno natural. A cidade parece um laboratório de escavações que não procuram a cidade perdida ou jazidas de ouro negro, que o diga quem vive ou passa pela Alameda D. Afonso Henriques, pela Avenida Duque D´Ávila e se atreve até ao Bairro Azul. Já lá vai quase meia década e um dos principais eixos da cidade continua transformado num estaleiro de grandes empreiteiros.
Para muitos, tudo se justifica com o desenvolvimento da cidade, alegando-se qualquer coisa a que se teima em apelidar de melhoramentos na qualidade de vida das pessoas na grande cidade. Mas, fazendo bem, é legítimo perguntar-se porque não se faz obra mais depressa, até porque se é em nome da qualidade de vida das pessoas que a obra nasce deveria ser legitimo que o tempo encurtasse para a ver nascer. Em nome de Lisboa e dos lisboetas, dos cidadãos que vêm e que passam, dos moradores, quando chegará o dia em que o desenvolvimento neste País não condene as nossas vidas aos custos descontrolados de tempo e de dinheiro?

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Obama (III) - os desafios

Barak Hussein Obama será, a partir de 20 de Janeiro de 2009, o novo inquilino da Casa Branca, após uma eleição com um enorme simbolismo histórico, ou não fizesse de um afro-americano o 44º presidente dos Estados Unidos. A expressiva vitória de Obama – 338 grandes eleitores contra 156 de McCain até ao dia de hoje – fez de uma América imersa numa grave crise económica e a braços com um esforço de guerra em vários palcos do mundo rejubilar. Numa reportagem da SIC em Washington era possível ver-se o entusiasmo com que tanta gente saiu à rua quebrando o cinzentismo de uma cidade tão formal quanto a rígida arrumação de Capitol Hill.
De Chicago, e perante uma multidão, as palavras de Obama para a América ressoaram como um sinal de esperança para um mundo cansado de oito longos anos de George W. Bush na liderança do país mais influente do planeta. A esperança na «mudança» começou a pautar o pulsar de americanos e não americanos a partir daquele momento. Resta agora, após a eleição mais desejada, saber de que modo o novo presidente dos EUA fará a diferença.

Se bem que os problemas internos dos EUA acabem por ter repercussão planetária (ocupando em primeira instância, e ao que tudo indica, a agenda do novo presidente), é no plano internacional que Obama enfrentará desde já os maiores desafios, sobretudo pelo capital de confiança adquirido para lá das fronteiras norte-americanas. Para os mais cépticos (nos quais me incluo), a crença em mudanças substantivas são ténues. A política externa norte-americana é no seu âmago análoga desde há mais de 100 anos, quando o poder em Washington congeminou o “destino manifesto” do papel dos EUA no mundo, visando um projecto imperialista – ou neo-colonial para o situar na época da sua origem. Com maior ou menor grau de multilateralismo, nada indica que se vá proceder a uma revolução liderada pelos EUA nas relações internacionais. Serão de prever as mesmas peculiaridades de sempre que se compreendem numa real politik utilitarista, entre o apoio a ditaduras estrategicamente amigas a situações de desequilíbrio extremo como o são os casos do Kosovo (iniciado com a dupla Clinton-Albright) ou da Geórgia, passando inevitavelmente pelo sempre periclitante Médio Oriente e pelo conflito israelo-palestiniano.
Para lá da crise económica profunda que alastra pelo globo e faz os Sarkozyis e os Barrosos da Europa ansiarem por uma refundação do capitalismo, é no plano militar e nos apoios estratégicos que se espera mais da actuação de Barak Obama. Porém, e conforme já deixou escrito, o novo presidente dos EUA anunciou sempre ser apologista de uma política externa «realista e bipartidária» ao estilo «do pai de George Bush, de John Kennedy e, em certos aspectos, de Ronald Reagan», pelo que não se pode esperar demasiado de Obama nesse capítulo, apesar dos tempos e das circunstâncias adquirirem volatilidades que podem condicionar mesmo os mais coerentes.
Em relação ao Médio Oriente, sabe-se que é sua intenção procurar uma saída rápida das tropas americanas mobilizadas no Iraque, mas em relação a Israel e à Palestina subsistem múltiplas interrogações, sabendo-se de antemão que poderão estar em aberto novas iniciativas diplomáticas para encontrar uma solução para um problema que deve ser encarado como a raiz de todos os males. Evidentemente que a busca de uma solução equilibrada para o longo conflito israelo-palestiniano liderada pelos EUA pode roçar a ficção cientifica, mas se Obama tiver coragem suficiente para a fazer, enfrentando o poderoso lobby sionista tão influente na política externa norte-americana, pode vir a estender o seu capital de popularidade às latitudes mais improváveis, mesmo assumindo que uma mudança da política externa norte-americana nesta matéria poderá comportar riscos pessoais incalculáveis – será à toa que Doris Lessing profetizou que «se Obama ganhar (…) matá-lo-ão»?
O multilateralismo surge como outro dos grandes desafios que Obama tem pela frente, sobretudo após o estado em que Bush Jr. deixou as relações dos EUA com muitos dos seus principais aliados. Com o capital de confiança que neste momento detém, cabe a Obama tomar as decisões certas para tentar pelo menos normalizar as relações com a Europa e, sobretudo, com a Rússia, abandonando desde já o provocatório projecto do escudo antimíssil na Europa de Leste. Ao mesmo tempo, e com o declínio das relações dos EUA com uma parte considerável da América Latina, surge o desafio de tentar restabelecer alguma confiança com os vizinhos do sul. O levantamento do embargo a Cuba poderá ser a chave para o início de um processo de estabilização diplomática com países como a Bolívia e, principalmente, a Venezuela de Hugo Chávez.
Com os dados lançados (e sobre a mesa há ainda outros dossiers tão prementes uanto os enunciados, como o Irão ou a Ásia), caberá agora a Barak Obama, o primeiro presidente negro dos EUA, responder aos desafios que tem pela frente com inteligência e coragem. Não se esperam milagres, mas há por esse mundo fora milhões de “believers” que acreditam na «mudança» anunciada e que se deseja palpável. Vejamos agora, até quando.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Obama (II) - uma visão sentimental

Nos inícios da década de 60 do século passado, Joseph Kappler reviu muitas das investigações feitas ao longo de décadas em matéria dos efeitos dos meios de comunicação social nas atitudes e comportamentos dos cidadãos, concluindo que os media, de facto, não persuadem os indivíduos a mudar de atitude mas sim a reforçarem atitudes para as quais já sentiam predisposição. Independentemente de toda a crítica e discussão susceptível decorrente da afirmação de Kappler, o fenómeno Barak Obama até poderia ser compreendido à luz desta conclusão.
De facto, Barak Obama potenciou na sua candidatura à Casa Branca a atitude de colocar milhões de cidadãos a acreditar em algo novo, como se a sua candidatura encarnasse um elemento fundamental na predisposição da larga maioria da população norte-americana: a vontade de voltar a haver esperança na relação entre o cidadão comum e aqueles que detêm o poder político.
Nos tempos que correm, ter esperança é uma sensação em vias de extinção na relação dos cidadãos com a política e os políticos. O descrédito semeado pelos agentes do poder ao longo de tantos anos, e tão evidente nos nossos regimes democráticos ocidentais, ocultou essa necessidade básica do homem social. Talvez por ter assumido tão eficazmente o papel, Obama fez predispor, como um efeito massificado (em todos os cantos do mundo), as pessoas para a crença na possibilidade da esperança alicerçada no mote da tão propagada «mudança».
O mais provável é que essa ansiada «mudança» não venha a ser tão substantiva quanto muitos pretendem. O certo é que hoje a América vai a votos e de forma quase inédita (pelo menos para a minha geração) meio mundo encontra-se debruçado na expectativa deste ser o primeiro dia de uma nova era, desconhecendo-se de antemão o que será objectivamente. Sem concorrência ideológica efectiva, nunca o mundo terá esperado tanto de um só homem. Para milhões, Obama não só poderá liderar a maior potência mundial como ser a esperança no futuro de um planeta a braços com crises profundas em matéria económica, social, ambiental e militar.
Esse homem, tal messias dos tempos modernos, chama-se Barak Obama, negro, quarenta e sete anos, filho de um queniano e de uma norte-americana branca, nascido no Havai, principal candidato a ocupar a Casa Branca, quatro décadas depois de Martin Luther King ter projectado um "sonho" em Washington.
Como tantos milhões, simpatizo com Obama. Apesar de acontecer lá longe, nunca um acto eleitoral terá envolvido a expectativa de tantos milhões como este, e tudo porque ali concorre alguém que parece transportar ao mundo a tocha da esperança. A minha simpatia por Obama é céptica em relação ao carácter messiânico do homem que pode transformar o mundo num lugar melhor, mas a verdade é que ele acendeu a luz da esperança em milhões de excluídos do seu país, desde negros a hispanos. Simpatizo com Obama porque há milhões de africanos que vêem a esperança renascer ao acreditarem num homem que talvez não esqueça a suas raízes. Simpatizo com Obama porque o mundo é um local cada vez mais perigoso e qualquer fenómeno, por efémero que seja, que conduza à esperança deve ser vivido, nem que seja em nome dos nossos filhos.
Obama poderá vir a ser um flop para todos aqueles que nele depositam tanto da sua crença no futuro. Para mim, alguém que não se revê ideologicamente na política norte-americana, para os párias dos EUA, para os mártires do continente africano, para os oprimidos pelos actos planetários do “império” americano e seus tentáculos. Obama pode até vir a ser o refundador do capitalismo em quem os antigos comparsas de Bush agora depositam a sua esperança para manterem à tona um sistema em crise e pelo qual são co-responsáveis.

Independentemente de tudo isso, da quase certeza nas expectativas frustradas de milhões por esse mundo fora, Obama conseguiu mexer com emoções e hoje, no dia em que pode vencer as eleições, o mundo globalizado vislumbra de novo aquilo que parecia ter esquecido: a esperança. Ou não simpatizássemos quase todos com aquele homem negro que, contra todas as expectativas, ambicionou um dia ser presidente dos Estados Unidos da América.

sábado, 1 de novembro de 2008

Obama (I) - a «mudança»

O sítio da internet da campanha de Barak Obama leva à exaustão a palavra que marcou todo o marketing de uma campanha: CHANGE. O mote em redor de cada campo da página Web é precisamente «change – we can believe in». Como característica bem americana, a «change» proposta por Obama comporta uma carga messiânica bem vincada – num dos atalhos da página lê-se «Front Row to History», conduzindo o visitante a um campo onde, a troco de um donativo, poderá vir a fazer parte do grupo de pessoas que estará no Grant Park de Chicago, na noite das eleições, a presenciar o momento “histórico” da anunciada vitória.
Simultaneamente, o apelo à união entre facções do partido é bem vincado nesta altura pelos estrategas de marketing político de Obama: «Welcome Hillary Supporters» é um atalho bem destacado na página, visando envolver todo o partido na campanha. Esse sentido de unidade supera os limites do próprio Partido Democrata, destacando-se uma lista de personalidades mais próximas de fileiras republicanas que se viram “cooptados” pelo projecto de Obama. O nome mais notório é o de Colin Powell, ex-secretário de Estado de George W. Bush.
Seguindo a viagem pelo sítio, é possível continuar a embater em mais «mudança». Numa t-shirt oferecida a todos os contribuidores da campanha pode ler-se «one voice can change the world». Mais uma vez, a palavra «mudança» surge em grande relevo, ganhando agora uma dinâmica universal, estendendo-se para além dos potenciais eleitores. No verso da t-shirt prolonga-se toda a amplitude universal da «mudança» enquanto epicentro de toda a mensagem da campanha:
If one voice can change a room then it can change a city; if it can change a city then it can change a state; if it can change a state then it can change a nation; if it can change a nation then it can change the world.
Entre tanta «mudança» polvilhando toda a campanha de Obama fica a questão: o que mudará efectivamente? Especulando-se, a mudança mais premente e imediata será o estilo da presidência. Barak Obama é objectivamente diferente de George W. Bush. O americano matarruano do Texas será substituído por um americano mais polido e confiante em si mesmo, sobretudo no domínio da comunicação com os mais diversos agentes da política, meios de comunicação incluídos. Barak Obama demonstra ter uma capacidade invejável (senão inédita no nosso tempo) para dominar os vários níveis da comunicação e da imagem no plano político, sendo até agora esse o seu grande trunfo nesta longa caminhada rumo à Casa Branca.
Efectivamente, toda esta epígrafe de «mudança» veiculada pelos estrategas de campanha de Obama surge até agora envolvida numa espécie de limbo ideológico ou, para não ir tão longe no uso de um conceito que comporta muito mais que palavras, num limbo de ideias. O que esta campanha para a presidência dos EUA demonstra é que aquilo que está em jogo vai para além de uma definição axiomática e articulada de ideias que conduzirão a policies. A imagem veiculada e a carga simbólica da mensagem, por mais abstracta que seja, é mais eficaz na prossecução do objectivo (vencer uma eleição) que a clareza e transparência das ideias.
Não deixa de ser interessante que a «mudança» anunciada na campanha se torne num paradigma que ultrapassa a barreira física (e, porque não, eleitoral) das fronteiras norte-americanas, estejam elas onde estiverem e venha apelar ao desígnio histórico do papel dos EUA no mundo. Perante uma crise financeira global com epicentro nos EUA, a efectivação da mensagem na sua imanente abstracção visa ser tão extensível no plano interno como externo.
Será pois, à sombra desta propagandeada «mudança» messiânica que, provavelmente, Barak Obama vencerá as eleições de 4 de Novembro, pois é ele, o único a reunir as condições necessárias para alterar a face do “imperialismo” americano que Bush colocou no estádio da decadência. A história que Obama se arrisca a fazer não passa somente por ser o primeiro mestiço a liderar o país mais poderoso do mundo. Aquilo que a história poderá vir a contar é que Obama foi o presidente norte-americano que inverteu o destino fatal do modelo capitalista que os EUA lideraram no mundo nas últimas duas a três décadas.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

A Elegia de Roth, segundo Stanley Spencer


There's a painting of Stanley Spencer's that hangs in the Tate, a double nude portrait of Spence and his wife in their mid forties. It's the quintessence of directness about cohabitation, about the sexes living together over time. Spencer is seated, squatting, beside his recumbent wife. He is looking ruminatively down at her from close range through his wire-rimmed glasses. We, in turn, are looking at them from close range: two naked bodies rightin our faces, the better for us to see how they are no longer young and attractive. Neither is happy. Ther is a heavy past clinging in the present. For the wife particularly, everything has begun to slacken, to thicken, and greater rigors than striating flesh are to come. At the edge of the table, in the immediate foreground of the picture, are two pieces of meat, a large leg of lamb and a single small chop. The raw meat is rendered with physiological meticulousness, with the same uncharitable candor as the sagging breasts and the pendent, unaroused prick displayed only inches back from the uncooked food. You could be looking through a butcher's window, not just at the meat but the sexual anatomy of the married couple.

Philip Roth, The Dying Animal ("O Animal Moribundo", tradução portuguesa)

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Breve Anatomia de uma Crise

Há pouco mais de um mês atrás, numa conversa de café, discorria com um velho amigo sobre o que mudara no mundo com o 11 de Setembro. Não obstante concordarmos com uma maior integração do sentimento de medo no nosso quotidiano, independentemente de não o racionalizarmos constantemente, concluímos que a maior alteração surtida nas nossas vidas foi a perda da inocência bacoca da nossa história ser encarada como “fim da história”.

Apenas alguns dias depois, e com o exponencial aumento do preço dos combustíveis a pautar uma crise económica generalizada que afectava já os preço de bens essenciais (talvez mais por efeitos especulativos do que por obra de efeitos “reais”), surge a revelação mais inesperada (?): há bancos a falir!

Comecemos pelo início: no Verão do ano passado, instalava-se no sistema financeiro norte-americano uma crise provocada pelos empréstimos à habitação concedidos a famílias que eventualmente não tinham condições para os pagar – o subprime ameaçava assim todo o sistema financeiro mundial. Em pleno centro nevrálgico do capitalismo financeiro, milhares de clientes da banca deixavam de pagar as suas hipotecas, o malparado disparou e os preços do imobiliário caíram a pique. Num sistema global, as repercussões do fenómeno depressa se fizeram sentir pois, através de produtos financeiros complexos, as hipotecas de famílias de baixos rendimentos (subprime) tinham sido revendidos para todo o mundo. Em síntese, e usando um eufemismo caro aos economistas, muita banca dos quatro cantos do mundo andou a comprar “material tóxico”, puro lixo, mascarado de activos e que feitas as contas podem mesmo não valer nada.

Baseado na mentira, no laxismo e na ganância, a banca internacional e todo o sistema financeiro prosperou num ambiente falsificado de excesso de crédito com garantias de menos, lançando o mundo numa crise que chegou e não se sabe quando e como acabará. A dimensão do problema é de tal grandeza que, à boa maneira socialista (a vida tem destas surpresas!), o porto de abrigo final são as nacionalizações. E no epicentro do capitalismo actual, o governo Bush não esperou por mais, e nacionalizou! Na Europa, com os efeitos a penetrarem no sistema, os passos americanos começam a ser seguidos, não vá a catástrofe arrasar com o que ainda soçobra. A exemplo, os prósperos islandeses que o digam!

Como é evidente, injectar milhões e milhões de dólares, ou euros, num sistema financeiro à beira do colapso, usando ou não como fuga para a frente (numa perspectiva de economia capitalista) a nacionalização de bancos, não é mais do que um acto desesperado para socorrer um estado de coisas que provavelmente não terá salvação possível, reservando a factura da crise, o cerne do problema, para a esfera dos cidadãos contribuintes. Para salvar a face, os tecnocratas que nos centros de decisão sustentaram politica e ideologicamente a farsa do capitalismo global num sistema financeiro opaco e falacioso, vêem agora o dinheiro do Estado (essa entidade, esse tal leviatã que se quer bem longe da nobre actividade do lucro) como o paliativo a administrar urgentemente ao doente moribundo que arrastará tudo quanto possa para o abismo se vier a padecer. A julgar pelo comportamento das mediocridades humanas que detém o controlo político dos Estados aqui e além-mar, a herança do colapso do sistema desregulamentado por eles criado ao longo das últimas décadas, abater-se-á sobre todos nós, cidadãos comuns, salvando-se ainda os anéis de alguns a quem já, certamente, ocorreu só restarem os dedos no fim da tempestade.

Perante a amplitude desta crise financeira, garante-nos o curto prazo o contágio dos efeitos da crise financeira na economia real. Num sistema decadente, em colapso de dentro para fora, os tempos que se avizinham serão certamente difíceis e pouco dados a previsões fiáveis. O fantasma da recessão económica generalizada traz consigo ameaças terríveis quer no plano económico quer no plano social. Falências, desemprego ou aumento de índices de pobreza serão decorrências imediatas desta crise nas nossas vidas. E, até quando, parece ser a pergunta que mais inquieta particulares e famílias.

Em jeito de reticências (para não haver tentações de colocar pontos finais nestas coisas da história!) para esta breve anatomia da crise, e lançando o mote para outra ocasião em que se discorra sobre crise e capitalismo, resta-me recordar o velho Marx que de há anos a esta parte faz parte das prateleiras mais recônditas e bafientas das universidades ocidentais. Estaria, afinal, certo no seu diagnóstico?

terça-feira, 22 de abril de 2008

Quando longe, sonho Lisboa

Cidade debruçada no rio que corre e se mistura com o sal do mar. Porto de chegada, porto de partida, porto de chegada... Sempre tu, terra de marinheiros e marialvas que irrompem das águas e galgam colinas.
A tua luz branca do sol reflectido nas calçadas a abraçar os calorosos edifícios. O teu buliço a roçar o caos e as noites tranquilas dos lares antigos onde os velhos adormecem tão sós.
Minha Lisboa. Cidade que me viste nascer e crescer. Como te amo, como te odeio. Como me sinto livre ao partir das tuas amarras profundas fundeadas no Tejo e te desejo quando lá de longe te sonho no sossego da distância.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Pensamento Crítico

Folheio o romance que actualmente leio. Houve, logo no início da narrativa, uma frase que me vincou a atenção: «Na sociedade humana, pensar é a maior de todas as transgressões». A frase surge logo nas primeiras páginas de «Casei Com Um Comunista» do norte-americano Philip Roth, e saí da boca de um personagem que é um professor de literatura inglesa. Pouco depois, acrescenta-se «Pensamento crítico, eis a máxima subversão».
Há alguns dias, num episódico destaque nos jornais, ficámos a saber que a nova reforma do sistema de ensino nacional afasta disciplinas como a Filosofia e a História do estatuto de cadeiras nucleares dos currículos do ensino secundário. A justificação parece despontar do novo conceito político que o governo do Partido Socialista faz do ensino e da visão de progresso que anuncia às actuais e às gerações vindouras, projecto esse assente numa noção que é assumida na linguagem do actual poder como uma prioridade e um desígnio nacional. Refiro-me ao conceito (projecto, objectivo?) de «Choque Tecnológico», expressão de contornos propagandísticos que compreende, tal como se pretende que indique, tecnologia abarcada com ensino, pragmatismo e competitividade.
De certa forma, a perspectiva subjacente ao conceito delimitado naquela expressão envolve mais um certo número de noções relacionadas com uma determinada linguagem da economia (a tirânica estatística da racionalidade do mercado) do que com a do progresso efectivo do povo, mais especificamente do povo português. Relacionando as medidas tomadas no sector da educação ao conceito de «Choque Tecnológico» depressa se percebe que o pensamento deve ser sacrificado em favor da racionalização de meios que possam presumir competitividade económica no mundo globalizado. Aquilo que na sua aparência parece (ou talvez não) mais estranho é o facto do denominado “choque tecnológico” do Governo não parecer saber conviver com outros saberes que não os considerados “úteis” de um ponto de vista estritamente economicista. Assim, e perante o actual racionalismo obscuro da praxis subjacente às políticas públicas, deixemos que o binómio custo/benefício imediato decida e justifique os afastamentos estratégicos de meios conducentes ao desenvolvimento do pensamento e da literacia.
Ora é precisamente a partir deste prisma que se percebe os fundamentos da razão do Poder em secundarizar uma cadeira tão vital para o fomentar do pensamento crítico como a Filosofia. Relegando os velhos e bafientos senhores da Grécia ou os mais recentes senhores Descartes, Kant, Hegel ou Marx para o fundo das salas de aulas, podemos progredir na linguagem do mundo de hoje, criando seres acríticos, anómicos e, se possível, apenas focados nas “realidades” que interessam, como se a humanidade não precisasse da Filosofia e dos filósofos para nada a não ser para atrapalhar o fluxo normal da racionalidade económica.
Na verdade, parece que se crê, no reduto de acção do Portugal do “choque tecnológico”, que a ciência se faz sem a filosofia, como se pensar o mundo nas suas múltiplas dimensões fosse um luxo a que as sociedade pós-modernas da globalização não se podem entregar. Mesmo sabendo que na origem das respostas da ciência estão questões filosóficas, eis a política ultramontana do governo português para o progresso do povo.
Junho de 2007

quarta-feira, 26 de março de 2008

Assim são os Blogues


A minha experiência com blogues vem de há uns bons três ou quatro anos. Entre a vontade de discorrer sobre muito ou mesmo nada, os blogues chegaram a tornar-se a minha pequenina e anónima obsessão. Depois, e como tudo na vida, tornaram-se uma espécie de mono a lembrar aquele sofá velho e usado que temos na sala à espera do dia em que o possamos substituir. E quando esse dia chega, lá o largamos à poeira do sótão porque, sabe-se lá por obra e graça do quê, algo nos diz que talvez ainda lhe possamos dar alguma utilidade.

Assim são os blogues. Algures vagueiam, assinados no anonimato de pseudónimos, heterónimos ou alcunhas, pairando por esse mundo ilimitado da internet, caídos no esquecimento do autor ou dos outrora regulares visitantes que alimentaram aquele narcísico contador de visitas que nos vai fazendo ganhar a ilusão de nos sentirmos populares.

Hoje, voltar à estação dos blogues é uma espécie de dejá-vu. De antemão, algo me diz que vou estar tentado, durante o fulgor inicial, a actualizações periódicas e ao alegre sacrifício de alguns minutos do dia a um espaço remoto como este. Depois, com o passar do tempo e perante outras prioridades ou vontades, aquilo que é hoje um bebé acarinhado e devotado torna-se de novo um mono. E assim se anuncia o esquecimento. E mais uma vez, se lança ao abandono o velho e usado sofá onde outrora se fez sala.
imagem: Benefits Supervisor Sleeping de Lucien Freud

terça-feira, 18 de março de 2008

Outono em Barcelona

De braço dado no Eixample, pelo Passeio de Grácia, da Pedrera à Casa Batlló. Sopra o vento frio que desce dos Pirinéus. Descemos devagar, na calma do estio pretérito, sentido a cidade pulsar. Queremos lavar os olhos no Mediterrâneo que acabou de ver Ulisses passar. La Rambla é uma festa! Há gentes de um mundo inteiro que faz acontecer vida em cada passo cadente que damos. Atiramos uma moeda ao homem estátua... Petrificado! Do Lyceu libertam-se vozes de anjos que é impossível ouvir perante a multidão entregue ao buliço. Um chocolate quente e churros no café da ópera aconchega o coração. Está frio, mas transpiramos a satisfação. Tudo pulsa: o Miró no chão, a velha fábrica de sombrinhas, os quiosques de bugigangas, as esplanadas cercadas... lá está a estátua de Cólom. Este é real, não é gente! Aponta para o mar. Aqui, do Porto Velho, de onde se deseja ancorar para depois subir, lenta e levemente, nesta tarde de Outono em Barcelona.

sábado, 15 de março de 2008

Recorda-me



Como a minha filha de cinco anos se deixa encantar pelos lugares onde passa, devo a ela já algumas memórias que o tempo que corre não me vai deixando lembrar com a frequência que deveria para me sentir, digamos, equilibrado.

Foi no verão passado, que ela registou estas imagens. A serra profunda, retratos de um lugarejo no norte da Austria, em pleno coração dos Alpes. Era manhã, recordo-o agora, e das janelas do quarto, a criança disparou a sua pequena máquina fotográfica para nos fazer lembrar à posteridade que a vida é bela quando se acredita que se está numa terra de conto de fadas.