sábado, 28 de março de 2009

Uma Teoria da Conspiração


À hora que escrevo estas linhas, a imprensa nacional anuncia, por via de um exclusivo TVI, que Charles Smith (sócio da consultora Smith & Pedro, contratada no âmbito do licenciamento do Freeport de Alcochete) surge num dvd, em posse da polícia britânica, a garantir que José Sócrates é corrupto e terá recebido dinheiro, por via de um primo, para dar luz verde ao projecto do “outlet” de Alcochete. Na TVI, é possível assistir ao som real do alegado dvd, acompanhado por imagens desfocadas a preto e branco que visam recriar a situação, ilustrando-a e dando-lhe o dramatismo merecido. Em suma, um mimo de produção do canal que se orgulha de representar o melhor que se faz na ficção portuguesa.
Já ontem, por esta mesma hora, a notícia de abertura dos blocos informativos da SIC e da RTP destacavam o artigo de opinião assinado por Marinho Pinto, onde o bastonário da Ordem dos Advogados desmonta todo o processo conspirativo que visa envolver José Sócrates no “caso Freeport”. No seu estilo, tantas vezes apontado como demagógico e desbragado, Marinho Pinto expõe o modo como se construiu um processo de investigação que nasce de uma carta supostamente anónima, e que hoje se sabe ter sido escrita por um ex-deputado do CDS-PP, e acabou por envolver uma tríade composta por agentes da Polícia Judiciária (um deles condenado por violação do segredo de justiça), um jornalista intimamente ligado ao PSD e um ex-chefe de gabinete do antecessor do actual primeiro-ministro em São Bento.
Perante dois cenários como os expostos, quase apetece lembrar aquele personagem de Graham Greene que dizia «No nosso século, a realidade não é coisa que se enfrente». Na verdade, perante a crise profunda dos difíceis tempos deste século (que já não é o de Greene), talvez valha mais romancear a realidade, dar-lhe uma certa excitação e discorrer a um ritmo telenovelistico, doseado em capítulos onde tudo parece avançar no sentido do desfecho para que logo o episódio seguinte o negue, numa espiral dialéctica que só o engenho da cultura televisiva é capaz de criar (qual devir histórico qual quê!).
Olhando para este “caso Freeport”, recuperado dos baús no ano de (quase) todas as eleições, apetece-nos claramente desligar mas, o mais emotivo de tudo isto é que começamos a sentir que nada do que se está a passar aqui é real, logo é esse picante da ficção que nos fixa aos próximos episódios e nos permite extrapolar. A mim, que tantas vezes me sinto com pouca vontade de enfrentar a realidade deste tempo insano prende-me esta história que envolve numa intriga internacional o primeiro-ministro do meu País (Sócrates), uns consultores mercenários (da Smith & Pedro), uma família pouco recomendável (a de Sócrates), uns fulanos da oposição a Sócrates (numa coligação não decretada CDS-PP/PPD-PSD), polícias (Judiciária), justiça (Ministério Público) e muita comunicação social sedenta de acção.
Ora, perante tamanho leque de ingredientes, comecemos uma teoria da conspiração que nada mais é que a minha, na óptica de espectador desta realidade que só se enfrenta porque nos parece absoluta ficção. Mas antes, de modo a evitar interpretações funestas ou maldosas, gostaria de expor, do ponto nevrálgico do meu apartidarismo, o que penso de José Sócrates, eventual grande protagonista deste seriado. Depois, sem escamotear que pode haver fogo de onde saí fumo, avançar com os sublinhados que fazem deste caso o cenário ideal para uma teoria da conspiração.
Produto da escola de um aparelho partidário, Sócrates tem uma qualidade inegável que reside na habilidade com que doseia algum carisma com um optimismo por vezes irresistível, mesmo perante o maior dos cataclismos. Este optimismo estratégico que o faz iludir as crises perante as maiores adversidades é a antítese do miserável “discurso da tanga” que o antecedeu, num pathos, emocional quanto baste, que transporta habilmente intermitentes estados de graça ao longo de quatro anos de governação. Mesmo perante manifestações de professores e de trabalhadores do público e do privado a sacudirem as ruas com quase tanto ímpeto quanto nos tempos do PREC, mesmo perante esta conjuntura económica internacional negativa, sem paralelo nas últimas largas dezenas de anos, a fazer disparar o desemprego, o actual primeiro-ministro vai resistindo.
Não obstante qualquer factor mais drástico, Sócrates e o seu PS mantêm todas as condições para ganhar as próximas legislativas, se bem que longe dos resultados de 2005. Há culpas na ineficácia da oposição é certo, mas há que reconhecer a habilidade política do actual primeiro-ministro, mesmo quando confrontado com ameaças internas que se perfilam no partido vindas de lideranças errantes, como as encabeçadas ora por Manuel Alegre (a fazer render o milhão de votos das presidenciais) ora por Mário Soares (eterna eminência parda que assombra de quando em vez a actuação governativa com aproximações à agenda da oposição). Independentemente de se encontrar escudado numa hábil máquina partidária (a que não pode ser estranha a actuação de uma velha raposa chamada Almeida Santos e o papel de guardião do aparelho partidário desempenhado por Santos Silva) e numa sólida maioria parlamentar ávida do seu estatuto, Sócrates faz valer-se do peso que detém enquanto principal rosto de uma geração de líderes provinda do "guterrismo" que, inevitavelmente, se afirma como a chave mestra para permitir ao aparelho socialista a manutenção do poder.
Em tudo o resto, José Sócrates é medíocre. E só não desce abaixo da mediocridade porque quase tudo o que o rodeia não é capaz de ser melhor que isso. O actual primeiro-ministro é nitidamente um produto destes tempos de descrédito dos agentes políticos, um resultado do nosso tão português «medo de existir», uma espécie de actor que encarna o papel com um guião suficientemente credível para as expectativas baixas do seu público. José Sócrates é uma interpretação mediana de alguém que, não sendo nem particularmente dotado nem talentoso, teve frequentes lapsos de engenho político nos momentos indicados, o que faz dele alguém que aproveitando a vaga vai sabendo evitar a espuma. Apesar de na vida real ter andado metido em situações um pouco dúbias, como uns projectos de engenharia duvidosos lá para a Beira Interior ou um sarilho de proporções mal decifradas denominado Universidade Independente, o maior risco que corre não parece ser, à partida, nem a crise nem este "caso Freeport". A ameaça velada aos seus objectivos vem dos ventos soprados por Belém, sobretudo se antes da data projectada para as legislativas trouxer tempestade. A hipótese é remota mas, não convirá descuidá-la perante uma conjuntura tão complexa que poderá envolver à gestão da crise um eventual problema de carácter.
Independentemente do que se possa pensar de menos positivo sobre o primeiro-ministro de Portugal, para lá das questões da política e das controvérsias que envolvem o passado de Sócrates, estou cada vez mais certo que há lobos bem mais ferozes que ele. E quer-me parecer que se movem como hienas perante uma carcaça que ainda estrebucha. Talvez isso justifique este caso do outlet com aquele estranho elenco de protagonistas que, se aliado ao timing das incidências públicas do caso, só podem ser lidas ou ao abrigo da tese da cabala ou como a mais infeliz das "coincidências" para um político com demasiados esqueletos no armário.
Porém, a favor de Sócrates joga um "caso Freeport"que caminha a passos largos para o descrédito, não pelo ruído que faz mas pelo facto de quando o faz. O eventual crime de corrupção vem a lume quando o secretário-geral do PS se prepara para enfrentar as eleições legislativas de 2005 e regressa agora, de novo, quando o primeiro-ministro se candidata a um segundo mandato. Agora, estes dois últimos desenvolvimentos não deixam de ser particularmente estranhos nos seus tempos de ocorrência: primeiro, o artigo do bastonário da Ordem dos Advogados que pela informação fundamentada que contém (e restringida ao processo e a processos anexos) se torna incontornável na exposição do caso perante a opinião pública; segundo, menos de 24 horas depois do artigo ser tornado público surge uma “conveniente” gravação visando secundarizar por completo o teor do artigo de Marinho Pinto, como se para um grande mal fosse imediatamente necessário um grande remédio.
O facto de ser aquela televisão a difundir o teor da gravação do suposto dvd com direito a uma dramatização encenada não pode parecer inocente ou ser confundido com furo jornalístico. De facto, a televisão de José Eduardo Moniz tem sido um dos meios de comunicação social mais hostis ao governo ao longo desta legislatura e não pode haver aqui confusão com tabloidização banalizada e muito menos com informação isenta. A exemplo, e a prová-lo, estão considerações constantes, laterais ao dever de informar, levadas a cabo em inúmeras emissões do principal telejornal da estação pelo seu mais influente pivot. Convém não esquecer que será de bom senso existirem fronteiras definidas entre informação e opinação, nem que seja em defesa do bom jornalismo.
O envolvimento na produção de factos passíveis de acção judicial por pessoas ligadas ao maior partido da oposição, e particularmente ao principal adversário político de Sócrates nas últimas eleições, só pode ser mesmo uma muito estranha e grave coincidência se quisermos ver todo o filme pelo prisma da realidade. Coisas destas não se passam num Estado de direito democrático! Mas, como aqui mandam as regras do seriado, nada como um ex-chefe de gabinete de alguém que até já foi primeiro-ministro, membros do maior partido opositor ao actual partido do governo e uns inspectores da Polícia Judiciária numa sala da casa de um jornalista com notória filiação partidária para termos emoção a rodos. Perante isto, porque não equacionar a tese de que há aqui uma conspiração sem deixar cair as dúvidas sobre o relacionamento de um primeiro-ministro nesta trapalhada toda?
Mas, estamos apenas a conjecturar uma mera teoria da conspiração sobre qualquer coisa que pode, ou não, ter acontecido. A estas hipotéticas leituras, quase tão fantasiosas quanto os factos que aqui se trataram, poderiamos ainda verificar as reacções ao artigo de Marinho Pinto por parte de alguns dos seus mais ilustres pares para, num ápice, perceber que o primeiro-ministro cooptou o bastonário da mais influente ordem profissional do País para a sua trincheira. Mas chega! Isso eram mais umas centenas de palavras e a realidade não pode ser mesmo coisa que se enfrente. Sobretudo aqui, em Portugal.
Nota final: Para quem queira congeminar a sua própria teoria da conspiração acerca do caso aqui ficam algumas fontes a consultar:

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