quinta-feira, 30 de abril de 2009

Cenas da Luta de Poder e de Classes

Corria o ano de 1888 quando August Strindberg, autor sueco, filho de um aristocrata falido e de uma empregada doméstica, escreveu a mais famosa das suas obras, «Menina Júlia». No prefácio à peça, Strindberg salientava:
«Deixei-me seduzir por um assunto por assim dizer estranho às lutas partidárias de hoje, visto que o problema da grandeza ou decadência social, da superioridade e da inferioridade, do bem e do mal, do homem e da mulher, tem e terá sempre um interesse duradouro»
Nesse mesmo ano, o Brasil abolia a escravatura e a Áustria via nascer o Partido Social Democrata dos Trabalhadores. Dois exemplos em resposta a relações de poder e de classe: no primeiro caso, a superação da mais abjecta forma de exercício de poder de uns sobre outros homens; noutra, o erigir de novas relações de poder e representatividade através da emancipação político-partidária de uma classe. Ambos os acontecimentos são meras curiosidades e, observando hoje uma peça como «Menina Júlia», apercebemo-nos como o autor tinha absoluta razão quando destacava o interesse duradouro dos temas aflorados, até porque o mote da jovem aristocrata na vertigem de descer ao mundo da criadagem até se ver bloqueada na sua própria teia quando sente que já é impossível recuperar o poder e o controlo sobre o todo, nada mais pode ser que «um tema da vida». Porém, simultaneamente, Strindberg estaria longe de entender quanto o rumo dos tempos faria da peça um clássico intemporal sobre uma época e sobre conflitualidades futuras que colocariam cara a cara homens em constante oscilação de posição de poder. Basta-nos relembrar quantas vítimas passaram a carrascos e vice-versa ao longo desse longo século XX para entender que o mundo mudara e transportara definitivamente as intemporalidades da vida doméstica para o plano distendido do social e do político.
Neste sentido, há nesta obra tão pulsante de vida a inevitabilidade de um olhar politológico que vê no triângulo “Menina Júlia-Criado-Cozinheira” uma metáfora sobre relações de poder e de classe que se revêem nas oscilações constantes de posição que os personagens vão ocupando ao longo da peça. No início, tudo está nos devidos sítios, como a metódica arrumação de uma sala de visitas. A menina, a filha do patrão que é conde, manda e os criados obedecem, até na satisfação dos mais ridículos dos caprichos, sem que se reconheça a vontade de questionar. Mas, depois vem o humano, a insinuação de quem serve mas ambiciona deixar de servir (o criado) e no ímpeto da carne e do desejo, no anseio pela experiência e pela transgressão, o poder desfaz-se. Há o ruído da turba, e a jovem mulher (a menina Júlia), agravada pela sua própria condição de género, como qualquer criatura em desgraça, vira escória, perde o poder e de agente manipulador transforma-se em agente manipulado, capaz de ser humilhada pela criatura mais submissa à sua própria condição de berço (a cozinheira). A tragédia traçada no horizonte de Júlia vislumbra-se como a libertação do criado à sua autonomia de construção de uma história; mas acaba por ruir quando, invisível, um poder maior, quase divino, se abate sobre ele (o do conde, a verdadeira emanação do Poder, sempre fora de cena mas tantas vezes presente como ente supremo, seja pelas botas de montar seja pelo toque estridente da campainha, segundos antes do cair do pano) e o recoloca na condição originária, ou seja, na daquele que nasceu para servir.
A encenação de Rui Mendes, com Beatriz Batarda, Albano Jerónimo e Isabel Abreu, agora em cena no D. Maria II, pode não ser genial nem sublime, mas tem a grande virtude de deixar fluir o texto, dignificando uma peça marcante na história do teatro ocidental.

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