quinta-feira, 23 de abril de 2009

Ballard e Chambers


As nossas vidas estão sujeitas ao
Império desses dois grandes
laitmotives
do século XX:
o sexo e a paranóia.
J. G. Ballard

Fazer o obituário simultâneo de um escritor e de uma estrela do cinema pornográfico pode parecer um pouco estranho. Porém, na minha memória imediata, J.G. Ballard e Marilyn Chambers, recentemente falecidos, surgem efectivamente ligados a um nome: David Cronenberg. Mas, bem vistas as coisas, ambos pertencem a um único universo, o da tardo-modernidade num século em que a ciência tida como modelo absoluto de eficácia social e a pornografia tão “acentuadamente política” (como a considerou Ballard) se confundiram.
Mas, recuemos a 1972, o ano em que a pornografia saltou dos red light districts para o mainstream e fez nascer duas estrelas improváveis, Linda Lovelace (protagonista de «Garganta Funda») e Marilyn Chambers (a “all american girl” de «Atrás da Porta Verde»). O impacto social e moral de «Garganta Funda» (eficazmente retratado no documentário «Inside Deep Throat») foi paralelamente complementado pelo mais elaborado e artístico filme dos Irmãos Mitchell, protagonizado por Marilyn Chambers (se não estou em erro, o único filme pornográfico a ter direito de exibição na Cinemateca Portuguesa).
De facto, ao contrário do padrão regular do cinema pornográfico, «Atrás da Porta Verde» revela preceitos estéticos que, muito embora discutíveis, são completamente inéditos no género. Como um crítico de cinema mainstream da época referia, «Behind the Green Door» era o filme que significava «a vanguarda de uma nova linguagem estética no cinema». À boleia deste impacto, Marilyn Chambers, que até já havia contracenado com Barbara Streisand num filme de Herbert Ross em 1970, torna-se um ícone para lá do género mas, consequentemente, também uma vítima desses anos fugazes da popularidade e aceitação do cinema pornográfico.
O ponto mais mainstream da carreira de Chambers surge em 1977, quando o mais ballardiano dos cineastas, o canadiano David Cronenberg a dirige no inquietante «Rabid», exercício de horror onde o desejo sexual, carnal e visceral conduz ao apocalipse (algo que já estava subjacente na obra anterior de Cronenberg, «Os Parasitas da Morte», e que encontrará o seu auge na adaptação do «Crash» de Ballard ao cinema). Para Chambers, «Rabid» era o seu primeiro trabalho enquanto protagonista num filme não pornográfico e consta que a actriz sustentava o sonho de fechar a página sobre o passado hardcore. Mas, como sempre no meio rated-X, o destino estava traçado e, conforme chegou a assumir, o passado nunca a abandonou, ainda mais quando a contra-revolução nos costumes se instala em Washington, com Ronald Reagan, no início dos anos 80.
Na introdução que o próprio escreveu para o seu livro «Crash» (1973), J. G. Ballard refere: «A pornografia é a forma de ficção mais acentuadamente política, dado que demonstra como nos usamos e exploramos uns aos outros da maneira mais impiedosa». Escritor britânico conectado com a new wave, ficou conhecido pelas suas obras no domínio da ficção científica, mas será precisamente «Crash», a sua obra mais pornográfica e apocalíptica, que o torna um nome incontornável na literatura do século XX. Morreu de cancro na próstata aos 78 anos tendo atingido o auge da popularidade quando Steven Spielberg adaptou ao cinema as suas memórias de guerra em «Império do Sol». Porém, o cineasta que mais jus fez à marca do escritor britânico foi precisamente David Cronenberg, sobretudo quando transporta «Crash» para a tela.
O «Crash» de Cronenberg é tão fiel a J.G. Ballard que promove a linguagem da pornografia a um segundo fôlego no cinema mainstream mas, desta vez, longe do impacto social e moral que o porno chic havia conseguido nos anos 70 (até porque o filme foi injustamente ostracizado). O que eventualmente a adaptação dessa obra maior da literatura conseguiu foi introduzir uma abordagem estética que, não sendo explicitamente pictórica, conduz a narrativa na lógica niilista que subjaze ao filme pornográfico. Tudo ao serviço de um realismo apocalíptico que se serve do automóvel «não só como imagem sexual, mas também como metáfora global da vida humana na sociedade dos nossos dias», usando as palavras do próprio Ballard.
O percurso de vida de Marilyn Chambers, a estrela porno que mais glam deu à indústria, poderia ser o drama de alguém que experimentou a adversidade da lógica impiedosa dos desejos que ligam a matéria sexual ao objecto, o qual, em última instância, é humano, conduzindo à aniquilação física e racional do indivíduo. Não faleceu, como Linda Lovelace, num acidente de automóvel - passível de ser encenado pelos personagens de Ballard enquanto ritual de satisfação sexual, num misto de chapa amolgada e carne -, nem renegou o seu papel de objecto de desejo na indústria do hard core como a companheira de geração, mas fez um percurso que culminou na solidão da autocaravana onde vivia e onde morreu por causas não apuradas. Pessoalmente, pouco poderia ter a ver com J.G. Ballard; seria mesmo uma improvável personagem dos seus livros porque o seu apocalipse terá sido efectivamente mais interior que exterior, mas não deixa de ser curioso como foram praticamente companheiros de morte.

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