domingo, 6 de dezembro de 2009

O Olhar de Korda

Na semana que agora passou estive, em trabalho, na Cordoaria Nacional a fazer o acompanhamento de uma visita pela exposição Korda Conhecido Desconhecido – com cerca de duzentas fotografias do famoso fotógrafo cubano Alberto Korda, autor da célebre fotografia do Che, Guerrillero Solitario -, guiada pela comissária Cristina Vives, acompanhada pela filha mais velha do fotógrafo, Diana Díaz, que tive o prazer, no final, de entrevistar.
A experiência da visita à exposição ficou marcada pela riqueza artística absolutamente estimulante da obra de Korda. Um fotógrafo que começou na moda e na publicidade, focando a sua objectiva na beleza feminina, e que depois transportou toda essa visão de sedução para um dos momentos mais inspiradores do século XX, a Revolução Cubana. E, sobretudo, para o seu líder, Fidel Castro.
Após a visita, complementada com um arrebatador documentário que incluía uma das últimas entrevistas a Alberto Korda, cheguei à fala com Diana Díaz. Apesar de ela não entender o meu português por mais que tentasse entrecortar as palavras, e de não me sentir disposto a expor o meu medíocre castelhano, um tradutor acabou por levar-lhe as minhas poucas perguntas e fazer a ponte para que conseguíssemos dialogar.
Incidi as questões fulcrais da entrevista baseando-me nas minhas próprias dúvidas enquanto estudioso ad-hoc do tema que domino com alguma coerência, sublinhando a relação de amizade que ligava o fotógrafo a Fidel Castro até 1968. Eram amigos íntimos, amigos de sempre, homens ligados na amizade que se reconheciam mutuamente pela inteligência e pelos ideais humanistas que os uniam. Diana falou-me de tudo isso, da relação intensa entre o líder político e o fotógrafo durante aqueles anos fulgurantes da Revolução Cubana.
Depois, cada um seguiu o seu rumo, como se houvesse um destino que ditasse papéis distintos, inconciliáveis para que o percurso de um e de outro se mantivesse simétrico. Mas, garantiu-me Diana, permaneceram sempre ligados por um forte sentimento de amizade e respeito, que só se rompeu em 2001, com a morte de Alberto Korda, em Paris.
Quando se pesquisa e lê o que se escreveu e disse sobre Korda, sente-se que esta separação nunca está bem explicada. Referi essa inquietação a Diana, temendo que estivesse a entrar por um caminho delicado. Abordei a dúvida invocando o ano de 1968, quando o Estado Cubano, através da “Ofensiva Revolucionária”, tomou todos os pequenos negócios privados em Cuba, incluindo o Studio Korda e consequentemente todo o espólio fotográfico aí reunido.
Apelando ao maior rigor possível na transmissão das suas palavras quanto ao que me iria contar, Diana falou-me do quanto esse excesso revolucionário (as palavras são minhas) magoara o seu pai. Mas Korda manteve-se sempre fiel à revolução, mesmo que a dinâmica política e social caminhasse para uma institucionalização crescente. Ao que me contou, o país institucionalizou-se, aqueles que rodeavam Fidel também. Era tempo de Alberto Korda escolher entre a sua própria institucionalização, que garantiria continuar a seguir o líder cubano, ou a liberdade enquanto fotógrafo e artista. Entre tornar-se militar ou quadro do partido comunista, Korda escolheu ser livre, livre para criar e fazer o que mais gostava: a fotografia.
Nas palavras de Diana, Korda teve três grandes paixões na vida, as mulheres, a Revolução (e consequentemente Fidel) e o fundo do mar. Era então tempo de se virar para aquela que a sua objectiva ainda não tivera a hipótese de explorar: o mar. Durante mais de dez anos fez, em Havana, fotografia subaquática; um refúgio e uma vontade.
Como sempre, quando se fala sobre o passado, a minha entrevistada terá deixado muito para contar. Não é objectivo do meio para onde escrevo fazer artigos ou entrevistas de fundo. Porém, no essencial, a virtude daqueles minutos foi trazer mais alguma luz sobre a relação entre dois homens absolutamente fascinantes, ligados pela admiração e amizade mútuas. E quando Korda faleceu, Fidel esteve lá para um último adeus.
Concluí a entrevista, apertei a mão a Diana e retirei-me. Durante alguns segundos, quase à saída do espaço expositivo, detive-me a observar uma foto de Korda com Fidel, captada por um fotógrafo não identificado. Ocorreu-me que acabara de estar com a filha de um homem que conheceu e privou com lendas do nosso tempo, Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara. Foi como se por resquícios de tempo e espirais de espaço incerto tivesse eu também privado com eles. Hasta siempre!

fotos: Alberto Korda

Entrevista disponível em Lisboa Cultural, nº 142

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