terça-feira, 19 de outubro de 2010

A América de Jørgen Leth

66 Scenes from America (1981) e New Scenes from America (2002), recentemente exibidos no Doclisboa, são duas abordagens absolutamente obrigatórias sobre as imagens e iconografias da América. Reflexos de um olhar quase sempre estático, conduzido em planos fixos, pacientemente contemplativos, resume, em cenas liminares que têm o condão, uma a uma, de contar uma pequena história, o fascínio imanente de uma América de arranha-céus e grandes espaços. Essa América tão omnipresente, tão familiar e pejada de produções na nossa retina e no nosso imaginário.
Depois, há Andy Wharhol a comer fast food do Burger King (a seco, porque, confessou o realizador ao público na passada segunda feira, ninguém se lembrara de comprar uma bebida) ou o barman do Sardi´s (bar de Manhattan que Leth escolheu por saber que por lá paravam Gena Rowlands e John Cassavetes) a demonstrar como se faz um bloody mary ou um dry martini. Pelo caminho, como num road movie, há uma viagem serena pela paisagem que recorrentemente evoca o génio de John Ford (Leth confessou ser um dos seus mestres), ou que mergulha no depoimento minimal de americanos comuns, ou que se fixa em pormenores da sofisticação inócua das imagens (a exemplo, a modelo loura dentro de uma limusina, com a Brooklin Bridge e Manhattan como cenário), ou que faz o retrato da paisagem material e humana da América profunda.
Vinte anos depois da primeira experiência, Leth, pressionado pelo seu câmara Dan Holmberg que mais uma vez o acompanhou, volta à América para uma sequela que resulta numa reconstrução revista e actualizada do primeiro filme. A marca da cultura pop subsiste, mas menos fulgurosa (ou apenas ainda mais familiar?). Nova Iorque continua sofisticada e ilusória; ainda tem o Sardi´s e, também, as torres gémeas (que haveriam de desaparecer antes do final das filmagens, não surgindo numa das últimas cenas do filme – por sinal, a única em que o plano não é fixo). A outra América aparenta permanecer quase igual, estática e imutável nos seus grandes espaços, nas estradas desfocadas pelo calor ou nas pequenas cidades do deserto. Até os cowboys resistem.
Nas New Scenes, já não há Andy Warhol himself, mas ainda há Robert Frank e Dennis Hopper em carne viva, e até Elvis e Marilyn, mas em papelão! Há a música de John Cale (o ex-Velvet Underground, porque para Leth, Wharhol era um deus, e Cale é como se fosse uma espécie de pedaço de deus que permanece aqui na terra), música amarga e dolente, como um requiem, surgindo a espaços. Porque afinal, há quem diga, e mesmo quem sinta, que a América toda perdeu a inocência no dia 11 de Setembro de 2001. Jørgen Leth ainda a captou, no dia em que a América a perdeu! (apesar de andar pela América profunda quando as torres cairam, dixit)

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