domingo, 24 de abril de 2011

A impostura

Conta Boaventura Sousa Santos, à saída da reunião com os representantes do FMI/BCE/UE no papel de director do Observatório para a Justiça, que se sentiu perante um interrogatório durante a reunião que com eles manteve. O tom sobre o modo como a troika tem conduzido as audições só pode surpreender os mais incautos. O próprio representante do Comércio e Serviços considerou mesmo que “a troika é bastante hermética” e houve quem deixasse escapar que a postura “está longe de ser a de alguém que vem negociar”.
Não deixa de ser caricato que se vá ouvindo e lendo por aí que estas audições têm um carácter negocial e, como se ouviu a um ex-dirigente do PSD, a troika define-se enquanto “um conjunto de negociadores” das referidas instituições. Em suma, “negociações” e “negociadores” são, nesta matéria, imposturas retóricas que parecem fazer subir a cotação dos que se rendem a uma espécie de beija-mão em nome de eventuais proveitos próprios. Nada mais.
As reuniões mantidas com os partidos políticos vão no mesmo sentido. O PSD está, no essencial, com o receituário da troika, pelo que terá sido isso que Catroga terá anunciado; Paulo Portas, com a habitual argúcia do discurso de campanha, fez gala em referir que lembrou os “negociadores” das limitações constitucionais e da absoluta necessidade de travar as grandes obras públicas. Todos felizes, consideraram-se parte das “negociações”.
À margem da impostura, o PCP e o BE recusaram o folclore montado em torno deste circo. Com razão, apesar do coro de vaias que depressa alastrou, e que em tempos de disputa eleitoral pode fazer mossa. Lucidamente, a esquerda denunciou as pretensas “negociações” e lembrou que cabe ao governo legitimamente eleito (e ainda em funções) ter uma verdadeira palavra negocial. E, perante a humilhação e o rebaixamento desta situação para Portugal, haja quem tenha uma resposta de verdade contra a impostura, em respeito pelo País e pelo povo português.

terça-feira, 19 de abril de 2011

48

Entre as múltiplas inquietações colocadas ao espectador perante 48, a primeira talvez seja perceber o que é que a fotografia mostra e, simultaneamente, oculta, sugerida pelo tipo de emoção que assalta o oprimido no momento em que o opressor o faz pousar para um retrato. Cada foto de cadastro vinda dos arquivos da polícia política tem um rosto que conta uma história maculada de dor, sofrimento, humilhação e medo; mas reserva, também, uma inacreditável capacidade de resistência perante a violência. Porque, assim se pode contar a história de um país ao longo de 48 anos de ditadura.
Aclamado em dezenas de festivais de cinema nacionais e internacionais, vencedor de vários prémios – incluindo o Grande Prémio do Festival de Réel, em França, e o Prémio FIPRESCI no Dok Leipzig, Alemanha –, o filme de Susana de Sousa Dias parte das fotos de cadastro dos presos políticos para estruturar, através da imagem, ou na ausência dela, e da palavra, ou nos silêncios, um olhar transversal sobre a ditadura. Não se confinado apenas à experiência da tortura exercida nos cárceres da PIDE, o filme propõe, pela sua cadência e forma, um convite à reflexão prolongada sobre o modo como o regime manipulava a ordem social, se impunha na vida privada e exercia o poder através do medo e da violência.

excerto do artigo publicado na edição 208 da Lisboa Cultural, de 18 de Abril de 2011