16 de Novembro de 1922 – 18 de Junho de 2010
Por ocasião dos noventa anos de Álvaro Cunhal, José Saramago publicou, na revista Pública, um texto em que falava sobre o “sentimento de orfandade que nos toma” quando pensamos em figuras da grandeza do líder histórico do PCP. Na passada sexta feira, pela hora de almoço foi a vez do próprio Saramago fazer encarnar esse sentimento de orfandade naqueles que o liam e desejavam continuar a lê-lo. Saramago morreu. Deixou de aqui estar. Apesar de ser público que o escritor se encontrava doente e extremamente debilitado, foi impossível contornar aquele abalo invisível de quem prefere pensar que há homens que nunca morrem. Eu fui um desses. Um entre milhares, provavelmente!, que se sentiram trespassados por esse anuncio violento que os fez inanes. O sentimento de orfandade, carregado de um pesado vazio, entre a comoção e o desejo de evasão do momento, como se me falhasse um familiar ou um amigo próximo.
Saramago acompanhou (e continuará a acompanhar) muitas horas da minha vida com o seu maior legado: os livros. Vi-o, pessoalmente, penso que por duas vezes, ambas na Festa do Avante!, ainda antes do Prémio Nobel. O único livro que me autografou está aqui a meu lado, recordando-me perfeitamente estar a viver a ressaca de “O Ano da Morte de Ricardo Reis” quando se deu o encontro que resultou neste autógrafo - eu que não cultivo autógrafos nem superava a timidez perante quem tanto admirava.
Encontro num velho caderno da época (a que chamo “diário”) a narração do momento: reparei na presença do autor, comprei o livro e depois dirigi-me a Saramago com um conselho pueril, do tipo “Nunca deixe de escrever”, enquanto colhia na segunda folha, a tinta azul, uma breve mensagem – “a Frederico, com a simpatia de…”. Felizmente, demoraram muitos anos para que Saramago deixasse de escrever e aquele autógrafo único na minha biblioteca viria a ser a marca de um Nobel. A partir daí, colher um autógrafo de Saramago passou a significar horas de espera e não mais me cruzei presencialmente com o escritor.
Olhando para trás, talvez o Saramago escritor tenha deixado de ser tão interessante a partir do momento em que ganhou o Nobel. O Saramago cidadão (do mundo, ibérico sobretudo), esse sim, cresceu, libertou-se ainda mais, como se se soltasse. Tornou-se indomável, e se nem sempre com ele conseguíamos concordar, sabíamos que ali permanecia uma voz constante e interventiva desta pátria decadente, por mais que o acusassem de quase tudo. Portanto, com a morte de José Saramago, não se perde só o escritor de língua portuguesa mais notabilizado no mundo, perde-se também mais uma das “nossas” reservas morais. E isso, nos dias que correm talvez seja ainda mais trágico.
No final do polémico e controverso “Caim”, o seu último romance publicado, lê-se “A história acabou, não haverá nada mais que contar”. Duvido que assim seja, mas aquela foi, de facto, a última história que Saramago nos contou. Porque agora sim, parou de escrever. foto: Fundação José Saramago
Por ocasião dos noventa anos de Álvaro Cunhal, José Saramago publicou, na revista Pública, um texto em que falava sobre o “sentimento de orfandade que nos toma” quando pensamos em figuras da grandeza do líder histórico do PCP. Na passada sexta feira, pela hora de almoço foi a vez do próprio Saramago fazer encarnar esse sentimento de orfandade naqueles que o liam e desejavam continuar a lê-lo. Saramago morreu. Deixou de aqui estar. Apesar de ser público que o escritor se encontrava doente e extremamente debilitado, foi impossível contornar aquele abalo invisível de quem prefere pensar que há homens que nunca morrem. Eu fui um desses. Um entre milhares, provavelmente!, que se sentiram trespassados por esse anuncio violento que os fez inanes. O sentimento de orfandade, carregado de um pesado vazio, entre a comoção e o desejo de evasão do momento, como se me falhasse um familiar ou um amigo próximo.
Saramago acompanhou (e continuará a acompanhar) muitas horas da minha vida com o seu maior legado: os livros. Vi-o, pessoalmente, penso que por duas vezes, ambas na Festa do Avante!, ainda antes do Prémio Nobel. O único livro que me autografou está aqui a meu lado, recordando-me perfeitamente estar a viver a ressaca de “O Ano da Morte de Ricardo Reis” quando se deu o encontro que resultou neste autógrafo - eu que não cultivo autógrafos nem superava a timidez perante quem tanto admirava.
Encontro num velho caderno da época (a que chamo “diário”) a narração do momento: reparei na presença do autor, comprei o livro e depois dirigi-me a Saramago com um conselho pueril, do tipo “Nunca deixe de escrever”, enquanto colhia na segunda folha, a tinta azul, uma breve mensagem – “a Frederico, com a simpatia de…”. Felizmente, demoraram muitos anos para que Saramago deixasse de escrever e aquele autógrafo único na minha biblioteca viria a ser a marca de um Nobel. A partir daí, colher um autógrafo de Saramago passou a significar horas de espera e não mais me cruzei presencialmente com o escritor.
Olhando para trás, talvez o Saramago escritor tenha deixado de ser tão interessante a partir do momento em que ganhou o Nobel. O Saramago cidadão (do mundo, ibérico sobretudo), esse sim, cresceu, libertou-se ainda mais, como se se soltasse. Tornou-se indomável, e se nem sempre com ele conseguíamos concordar, sabíamos que ali permanecia uma voz constante e interventiva desta pátria decadente, por mais que o acusassem de quase tudo. Portanto, com a morte de José Saramago, não se perde só o escritor de língua portuguesa mais notabilizado no mundo, perde-se também mais uma das “nossas” reservas morais. E isso, nos dias que correm talvez seja ainda mais trágico.
No final do polémico e controverso “Caim”, o seu último romance publicado, lê-se “A história acabou, não haverá nada mais que contar”. Duvido que assim seja, mas aquela foi, de facto, a última história que Saramago nos contou. Porque agora sim, parou de escrever. foto: Fundação José Saramago