quinta-feira, 4 de julho de 2013

Que alternativa quer o PS?


À margem da sucessão de episódios que revela quão podre está o governo PSD/CDS, o Partido Socialista alinha-se no discurso da esquerda quanto à inevitabilidade de realizar eleições com a maior brevidade possível. Porém, aquilo que se vai lendo nas entrelinhas do discurso pouco coerente e algo malabarista de António José Seguro é que a alternativa possível, preconizada pelo PS, parece estar a ser namorada com Paulo Portas e o CDS.
Será porventura especular que o número de ópera bufa oferecido pelo parceiro de governo de Passos Coelho ao País nestes últimos dias tenha algo a ver com este namoro. Mas, numa altura em que a política dos agora denominados “partidos do arco da governação” se encontra no ground zero da credibilidade e da moral, talvez não seja demais relacionar uma coisa e outra.

Na verdade, o PS ainda não foi capaz de assumir com contundência que pretende rasgar o memorando da troika e ser, de facto, uma alternativa verdadeira à política de desastre da direita. Em suma, a postura hibrida de Seguro em relação à governação socialista de Sócrates, ao memorando da troika e uma certa simpatia para com o CDS faz temer o pior.
Ao mesmo tempo, Seguro diz estar disposto a abrir caminhos de diálogo com todas as forças políticas, notando-se que essa abertura ao consenso parece embicar mais à direita do que à esquerda. Pergunta-se, assim, como é que o PS pretende ser alternativa à política criminosa, anti patriótica e destrutiva do PSD e do CDS contando, precisamente, com o PSD e o CDS a seu lado? 

sábado, 28 de abril de 2012

Entrevista a José Filipe Costa, realizador de "Linha Vermelha"


Entrevista publicada na Agenda Cultural de Lisboa - Abril 2012

Vencedor do Prémio de Melhor Longa-Metragem Nacional na última edição do IndieLisboa, Linha Vermelha chega agora aos cinemas. O documentário de José Filipe Costa revisita um dos mais vistos e comentados filmes sobre o Processo Revolucionário em Curso (PREC), Torre Bela, filmado pelo alemão Thomas Harlan em 1975, durante a ocupação da herdade ribatejana dos Duques de Lafões, propondo uma análise apurada sobre os acontecimentos e o poder da câmara na construção da realidade.
Linha Vermelha pretende ser uma desconstrução de Torre Bela no sentido em que o cinema tem muitas vezes, como se diz no seu filme, “o poder de levar a imaginação mais longe para transformar a vida”?
Aquilo que me interessava, propondo para isso uma reflexão através do filme, era entender como uma equipa de cinema pode potenciar os factos. Isso é sabido, e até banal nos dias de hoje. O que sucede no filme do Harlan é que aquelas pessoas que não tinham experiência política, porque isso lhes estava vedado, ao terem ali a presença da câmara, percebem a oportunidade que têm para se mostrar. O realizador acaba por explorar aquilo que procurava, ou seja, filmar o modo de funcionamento do poder popular. Mas, aquela presença acabou por condicionar os eventos, confundindo-se até com a própria memória que se tem deles…

De que modo é que percebeu que isso sucedeu?
Durante o trabalho de campo havia muita gente que me respondia “aconteceu exatamente como se vê no filme.” Percebi então que o Torre Bela era muito conhecido e que as pessoas usavam aquelas imagens para construir a sua própria memória dos factos, tivessem ou não vivido a experiência.

Algo que condicionou a leitura dos factos…
A câmara tem sempre o poder de potenciar acontecimentos ou controlá-los. O Harlan não procurou captar uma imagem limpa da ocupação, acabando por contribuir para instituir uma certa imagem de caos que ainda hoje persegue o PREC. O que se esquece é que a câmara não está lá sempre, não explica que, no passado, aquela gente estivera sujeita a condições muito duras, até mesmo a uma praça de jorna, e não capta que durante a ocupação se tentava construir qualquer coisa completamente nova, como o direito à alfabetização, à cultura ou a cuidados básicos de saúde. Em suma, direitos que estavam completamente vedados àquelas pessoas. É preciso não esquecer que a pobreza era imensa e naquela zona rural a estrutura era praticamente feudal.

Harlan considerava o seu filme “um instrumento de luta”. Linha Vermelha, aos olhos de hoje, também o é?  
Na arena do combate das imagens da história, do combate pela memória, acho que sim. Para os que dizem que o PREC foi uma desgraça, eu coloco-me do outro lado dizendo que aquela foi uma época interessante, com uma riqueza imensa para descobrir e refletir. O que hoje se diz sobre aqueles dias abafa o quanto de extraordinário aconteceu. De certo modo, o meu filme pretende desdramatizar os estigmas que ainda hoje perseguem os ocupantes e os eventos da Torre Bela.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Destruir vs. Construir

Na visita que fez hoje aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, Jerónimo de Sousa teve o condão de colocar o dedo na ferida com a simplicidade (dir-se-ia dos justos) que caracteriza o líder do PCP. Perante os trabalhadores acossados pelas idiossincrasias do sistema capitalista neoliberal que acossa os trabalhadores portugueses, perguntou muito logicamente o seguinte: porque é que o Governo que põe à disposição da Banca todos aqueles milhões que são do domínio público não é capaz de operacionalizar um equipamento nevrálgico para a produção nacional com 2 ou 3 milhões de euros?

Jerónimo de Sousa, tal como largos milhares de portugueses, sabem que a resposta é simples: a denominada troika FMI/BCP/UE está cá para destruir o que resta do país. E tem no Governo de Passos Coelho o instrumento ideal para o conseguir. Por sinal, este Governo (ainda assim eleito pelos portugueses, coisa que já se percebeu começar a rarear pela Europa acossada – será preciso lembrar a legitimidade democrática dos governos grego e italiano?) vai imitando em circunstâncias bem mais gravosas o “cavaquismo” de má memória. O papel do “bom aluno” da integração europeia que entre finais da década de 80 e anos 90 ia distribuindo dinheiro em troca da chacina da produção nacional, encontra agora uma fórmula bem mais selvagem e devastadora.

Perante a mais-valia daquilo que deveria ser um desígnio nacional, ou seja, a reindustrialização, as gentes perigosas que nos (des)governam impõem sacrifícios sangrando os meios de produção que nos restam. Quase que lembram a política de terra queimada que trouxe a fome a milhares de trabalhadores portugueses nos anos de 80, quando o governo de Cavaco Silva agiu determinantemente no sentido de destruir a “cintura vermelha” da margem sul, liquidando as grandes indústrias de Almada, Barreiro e Setúbal.

Agora, casos como o dos estaleiros de Viana do Castelo multiplicam-se de norte a sul com o que ainda subsiste do mundo operário em Portugal. O resultado é o desemprego, o agudizar das desigualdades e o empobrecimento de vastos sectores da população que são empurrados para um esquema de desvalorização do trabalho e/ou desemprego. E, como é evidente, destruir o que ainda subsiste de um sentimento de classe determinante nas lutas contra as brutalidades do capitalismo.

Entretanto, e perante os jogos perigosos da especulação financeira a que a banca portuguesa não passou (evidentemente) imune, os dinheiros da “ajuda externa” e dos contribuintes prepara-se para ser desbaratado na recapitalização dessa mesma banca. Ao apresentarem resultados negativos (pela primeira vez, esclareça-se) os grandes bancos portugueses preparam-se para deitarem mão aos tais 12 mil milhões de euros que a rapaziada do FMI e do BCE colocou à disposição. Mas 2 ou 3 milhões de euros para investimento nuns estaleiros modelo a nível europeu não existem.

Voltando ao exemplo dramático dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, é aqui claro quais as reais intenções deste Governo. Não se trata somente de destruir o Estado social, o valor do trabalho e o que ainda soçobra da Constituição da República Portuguesa que plasmava os valores de Abril. Esta gente quer ir ainda mais além e, impunemente, daqui a algum tempo, quando abandonarem o poder e derem lugar a um outro qualquer governo fantoche, estarão ao fresco, deixando o país arruinado e irreversivelmente isolado em dívidas, sem capacidade para decidir um rumo.

Enquanto o tempo passa, vão papagueando as inevitabilidades e acusando os portugueses mais pobres e os remediados de viverem acima das suas possibilidades. Gente que, aos olhos das Merkeles deste mundo e dos seus comparsas domésticos, nunca deveriam ter deixado os grilhões das galés e o chicote do dono, como ralé preguiçosa que é.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A traição ainda é o que era

Talvez seja porque hoje é o dia em que Manuel Carvalho da Silva abandona a liderança da CGTP que me ocorre escrever sobre a UGT e João Proença. Parece que o estou a ver, bonacheirão, nas conferências de imprensa ocorridas por ocasião das duas últimas greves gerais. Como se o sucesso da luta dos trabalhadores portugueses tivesse passado pelo seu contributo. Recordo também uma outra greve em que o anafado Proença estava no estrangeiro, mas fez questão de chamar a imprensa portuguesa para comunicar ter dado indicação para que lhe fosse retirado um dia de vencimento, à semelhança de todos os que aderiram a essa acção de luta. Que altruísmo comovente o do Proença!
Agora, quando o vimos a assinar com os sujeitos do Governo e o patronato uma autêntica ofensiva contra o trabalho e os trabalhadores portugueses, assistiu-se a mais um one man show de sacanagem e aldrabice à moda dos Proenças deste país. Contra a classe que ousam afirmar representar; contra a classe que ousam aclamar defender enquanto lhes martelam pregos nas palmas das mãos. Primeiro, veio com a cantilena do mal menor; depois, tal Judas, assina o pacto de traição e desculpa-se acusando a CGTP de o pressionar a manter negociações e colocar a assinatura. Que habilidade aparvalhada a deste Proença!
Independentemente de tudo isso, os mais incautos terão caído na ratoeira como rato à coca de queijo. O favor do Proença ao patronato e as desculpas imorais que foi proferindo atingiram todo o movimento sindical, incluindo a CGTP que, dignamente, abandonou a farsa que os lacaios do patronato – ou seja, o Governo – estavam a montar. E atingiu porque, uma vez mais, arrastou a posição dos sindicatos para a lama ao trair os interesses daqueles que representam, os trabalhadores. E todos sabemos como a imagem das instituições está pelas ruas da amargura!
Surpreendente? Claro que não. Uma vez mais para os incautos, há que propor um olhar para o passado da UGT e dos seus líderes, desde a sua fundação em 1978, após as lutas fracturantes no seio da Intersindical. Há material suficiente a circular para percebermos, de uma vez por todas, que na génese da sua criação estava a divisão dos trabalhadores portugueses e o enfraquecimento das suas lutas. Isso foi, à semelhança do que tem acontecido com os próprios partidos políticos, determinante para a criação de um estado de desconfiança e de falta de credibilidade que, lentamente, assoma e toma conta do regime. À medida de quem puxa os cordéis.
Por tudo isso, esta traição é mais uma, provavelmente a mais grave até ao momento, mas de facto apenas mais uma. Ou não fosse, para a UGT e os Proenças que por lá militam, a traição uma prática histórica.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Mark Rothko


A propósito de um trabalho sobre Vermelho, em cena no Teatro Aberto, um perfil sobre Mark Rothko, um dos grandes pintores americanos do século XX.
Poucos artistas teorizaram tanto sobre arte e, mais concretamente, sobre a sua própria criação artística quanto Mark Rothko. Para a dramaturgista Vera San Payo de Lemos, a grande virtude de Vermelho, de John Logan, foi “tratar com muito rigor o legado intelectual de Rothko, registado em inúmeros ensaios, palestras e correspondência.” Apesar de se tratar de uma ficção histórica, “o texto altera pouco os dados históricos e manifesta um conhecimento aprofundado do pensamento de Rothko.”

Nascido em 1903, em Dvinsk, na Rússia, Marcus Rothkowitz, nome de baptismo de Rothko, é o quarto filho de um farmacêutico judaico que emigra em 1910 para os Estados Unidos da América. Em 1913, a família junta-se a ele e estabelecem-se em Portland, Oregon. Ao longo do seu percurso escolar, Rothko demonstra grande interesse pelo estudo da arte, do teatro e dos clássicos, garantindo uma bolsa de estudos que o leva a ingressar na Yale University, onde estuda com Max Weber. Acabará por abandonar Yale, em 1923, sem ter concluído o curso.

A paixão pelo teatro levam-no a Nova Iorque onde tenta ingressar, embora sem sucesso, no American Laboratory Theater. Acaba por matricular-se na New School of Design e, entre 1925 e 1928, trabalha como ilustrador gráfico. Expõe pela primeira vez em 1928, ao lado de Milton Avery, que se tornará seu mestre e amigo. Em 1933, Rothko tem a sua primeira exposição individual em Nova Iorque, na Contemporary Art Gallery.

Em 1935, ao lado de Adolf Gottlieb funda o grupo The Ten que se baseia nos princípios da pintura realista, na exploração do expressionismo e da pintura abstrata, opondo-se ao conservadorismo dos círculos artísticos da época. Dez anos depois, Rothko é um pintor aclamado e expõe nas mais conceituadas galerias de Nova Iorque. Em 1952, surge ao lado de Clyfford Still e Jackson Pollock na exposição Fifteen Americans, no MoMA. Em 1958, e após alguns colegas o acusarem de “desejar obter um êxito burguês” subvertendo a sua obra, Rothko aceita uma encomenda milionária de murais para o luxuoso restaurante Four Seasons. Mais tarde, abandona o projecto e devolve a totalidade da verba recebida.

Em 1961, o MoMA acolhe a primeira retrospectiva da sua obra. No ano seguinte, rescinde o contrato com a Sidney Janis Gallery em protesto contra o apoio dado por esta à pop-art. Em 1968, sofre um aneurisma e os médicos proíbem-no de pintar telas com mais de um metro de altura. Um ano depois, doa à Tate Gallery de Londres nove dos murais criados para o Four Seasons, com a premissa de que lhes seja dedicada uma sala em que possam figurar em conjunto. Suicida-se, no seu estúdio, a 25 de Fevereiro de 1970, dia em que os murais chegaram a Londres.

sábado, 26 de novembro de 2011

Duas ou três coisas sobre ela

DA DEMOCRACIA. Não surpreende. Nada surpreende. Mesmo nada, quando alguém diz que uma greve é um direito inalienável dos cidadãos em democracia. E, depois, vêm outros e apuseram, apuseram sem parar a mesma ideia como bons democratas numa bendita democracia. Um direito inalienável dos cidadãos que, esperem que ainda falam os democratas, tem o condão de lixar a vida a quem quer trabalhar, apesar de a greve ser um direito inalienável dos cidadãos em democracia. Isso, senhores, isso de não deixar trabalhar quem quer é imperdoável! Quem se julgam os grevistas para exercer a ditadura sobre os que vão trabalhar? Raios partam os motoristas dos autocarros, os maquinistas dos comboios ou os controladores aéreos que não deviam usufruir desse direito de fazer greve ao mesmo tempo. E repetem os democratas, e os que querem ir trabalhar? E, eu grevista, devia sentir-me culpado, mas não sinto.
DO COLECTIVO. Ganha-se muito bem em Portugal, sobretudo na função pública, poderia ser a frase que ninguém ousou dizer enquanto se percebiam os números da greve a crescer. Porém, ficou no ar a táctica do implícito, essas entrelinhas, virtude retórica de muitos reputados democratas que vão à rádio e à tv analisar a greve. Porque, voltemos ao implícito, fazer uma greve custa dinheiro a quem a faz. Que porra, é um dia de ordenado e estamos todos mais para o lado do falido que outra coisa. Mas, o que importa é dar três vivas enérgicas a quem, contra tudo e contra todos, vai trabalhar em dia de greve. Os que a fazem que a paguem e, se o que foi trabalhar alguma coisa satisfizer com o caderno de encargos dos grevistas, melhor. Quem manda esses grevistas serem ursos? Não têm outro nome, os grevistas, ursos que sacrificam um dia de salário quando, afinal, já estamos todos irremediavelmente fodidos. Para quê fazer greve, é preciso trabalhar, duas vezes trabalhar, como mandam os gajos que nos fodem. Essa coisa da luta colectiva e da solidariedade entre trabalhadores é tudo balelas do passado. Só não convém esquecer é que se houver folga na foda, os que trabalharam também mamam como os outros mamíferos que são ursos. Mas, não foi sempre assim?, pergunto, eu grevista.
DA JUSTIÇA. Dói no bolso de quem faz greve. E no bolso do País? Os bandidos não são os tipos que proporcionaram o estado a que chegámos e, consequentemente, a greve. Bandidos são esses milhões de grevistas. E os gajos que se vão manifestar e cortam o trânsito. Se ficarmos gregos como estamos ainda vem para aí outra greve, e outra, e mais outra. Se não fossem as greves a Grécia não estaria falida e vergada como está. Que raio, direito e democracia sim, mas deixar os sindicatos levarem o País à falência não. Até porque isso do poder a andar pela rua só leva à desgraça. É preciso trabalhar para ser produtivo. Salários dignos? Qual quê. É preciso ajustarmos, ajustarmos por um Portugal ajustado aos novos tempos. Com tanto ajuste, ninguem nos agarra! E agora mais uma: honrar compromissos com credores. E outra: vergar, se preciso, os sindicatos. Tudo em nome do interesse nacional. Censuras? Referendos? Somos todos democratas, caramba. A greve sim, mas pequenina, de modo a que se consiga ir trabalhar e não se dê por ela. Até porque Portugal não pode andar a pagar greves. Malhem nos grevistas e deixem-nos trabalhar, pareceu-me ouvir lá dos lados de São Bento. Cá está, o democrata que o disse foi ouvido e avança a polícia para “malhar” nos manifestantes num directo para a tv. Mergulho no silêncio, eu grevista.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Sangue do Meu Sangue | entrevista João Canijo

A 18 de Outubro, após a apresentação de Sangue do Meu Sangue no Festival de Busan, na Coreia do Sul, consegui, por fim, falar com João Canijo a propósito do seu filme. Fora uma entrevista adiada pela ida do realizador a paragens tão longinquas, mas também por não querer "massacrar" alguem que estaria a padecer de jet leg nos dias seguintes ao regresso. Assim, lá nos encontrámos na Casa da Imprensa, hoje sede da produtora Midas Filmes. Muito daquilo que falámos ficou de fora, nomeadamente uma nova relação de incesto no cinema de Canijo desta vez por "culpa" da Rita Blanco ou a experiência de suburbio francês vivida pelo realizador e pelo seu director de fotografia aquando dos trabalhos preparatórios de Ganhar a Vida. Outras tiveram que ser suavizadas porque, aquilo que mais agrada numa conversa com o João Canijo, é ele não se coibir nunca de chamar "os bois pelos nomes" (já tinha percebido isso na primeira ocasião em que o entrevistei mas agora, pela informalidade da conversa, isso foi mais perceptível). A entrevista foi publicada na edição desta semana da newsletter Lisboa Cultural. As (excelentes)fotos são do Francisco Levita.

A REALIDADE NÃO É UM PAÍS ESTRANHO
Aclamado pelo público e pela crítica, Sangue do Meu Sangue continua a ser um sucesso nas salas de cinemas nacionais e a ser celebrado nalguns dos mais destacados festivais internacionais de cinema. A mais recente obra de João Canijo é um exercício sublime de realismo, cru e visceral, onde o meio nunca se dissocia da tragédia que assombra a vida sofrida de três mulheres capazes, no limite, de tudo por amor. Após a apresentação do filme na Coreia do Sul, o realizador concedeu uma entrevista exclusiva à Lisboa Cultural onde fala do flagelo dos bairros periféricos, do agora denominado “método Canijo” e das mulheres.

Depois de tanto desamor em Noite Escura e Mal Nascida, eis Sangue do Meu Sangue, um filme sobre amor incondicional. Como é que aconteceu esta viragem?
Exactamente porque ambos, mas sobretudo o meu último filme de ficção [Mal Nascida (2007)], era sobre a falta de amor. Logicamente, quis agora fazer um filme sobre o amor que não é questionado. Esse era o ponto de partida. Depois, esse amor teria de ser vivido num bairro social, da periferia da cidade. À maneira dos americanos, diria que é a história de uma mãe que arrisca perder uma filha para a salvar e de uma tia que se perde para salvar o sobrinho.

E porquê o bairro social?
Quis situar a acção num sítio onde as pessoas têm de lutar muito pela sobrevivência, onde não têm tempo para elaborar e racionalizar pensamentos sobre os sentimentos. Limitam-se a vivê-los e a tê-los à flor da pela, de uma maneira muito orgânica. E, era isso que me interessava, não aquele tipo de sentimentos disfarçados ou ocultos por camadas de pensamento muito elaborado.

E é assim que mergulha no Bairro Padre Cruz…
Aconteceu após muitas viagens no eixo Amadora-Sintra, onde descobri não existirem bairros sociais antigos, já que datam todos do final do século passado. No Bairro Padre Cruz encontrei uma malha urbana muito especial e descobri uma casa, não um apartamento, que tivesse sido habitada por duas ou três gerações. Isso era essencial para transmitir a ideia da família que está muito enraizada naquele meio.

O Bairro Padre Cruz surpreendeu-o?
Apesar de ter uma certa ideia do bairro, sim porque pensava ser um aglomerado de prédios de apartamentos e descobri algo completamente diferente. Naquele que é o maior bairro social da Europa, há uma parte antiga, mais pequena, que foi a sua génese. O Bairro Padre Cruz foi construído para alojar os cantoneiros da Câmara Municipal de Lisboa e foi pensado como uma aldeia, com casinhas baixas e com uma particularidade que em nenhum bairro social do salazarismo existe: as ruas pedonais. O que é surpreendente, e tem graça, é que essas ruas têm escadas, são empedradas, sem trânsito e funcionam como pátios comuns…

O ambiente perfeito para o filme…
Sabe que muitas vezes as coisas próximas são aquilo que não vimos, e que apenas se descobrem por acaso, ou não tanto por acaso. A minha antiga mulher-a-dias, a Sra. D. Felicidade, que trabalhou para mim durante 16 anos e que faz parte da família, vive lá, precisamente na mesma casa que a actual. Acabou por ser a filha dela a servir-me de guia no bairro, permitindo-me, durante três meses, fazer entrevistas junto da população e conhecer aquele meio.

Como descobre aquela casa?
Aquela zona do bairro era para ser demolida (agora, devido à crise, já não vai ser). Cerca de metade daquelas casinhas estavam devolutas, portanto foi fácil ter uma casa vazia que pudéssemos remodelar e adaptar ao filme. As pessoas do bairro também nos ajudaram e a casa que escolhemos foi, por sinal, uma das primeiras que visitámos.

O João estuda profundamente o meio onde se passam os seus filmes. Viveu dois anos num bairro social dos arredores de Paris aquando de Ganhar a Vida e percorreu centenas de bares de alterne para fazer Noite Escura. É ai, no contacto directo com a realidade, que começa o “método Canijo”?
Penso que não se pode abordar um assunto que se passa num determinado meio sem o conhecer profundamente. Dou um exemplo: o Guillerme Arriaga, argumentista do [Alejandro G.] Iñarritu, quando ganhou um prémio em Cannes, foi questionado sobre o tempo que demorava a escrever um argumento; respondeu “agora que já tenho mais prática, demoro dois anos e meio”. Isto sucede porque faz exactamente a mesma pesquisa. Eu não posso falar sobre um bairro social sem conhecê-lo.

E como aplica o “método” aos actores?
Desta vez fui mais radical e fiz exactamente como queria [risos]. O argumento foi escrito com os actores desde o início. O tema era o amor incondicional num bairro social, havia uma mãe e uma filha, definiu-se que a mãe era mãe solteira e havia uma irmã e outro filho. Depois seguiu-se a construção das personagens, com os actores a definirem profundamente quem eram e a irem trabalhar nas profissões que escolheram para as suas personagens: a Rita Blanco foi trabalhar para um restaurante; a Anabela Moreira trabalhou num cabeleireiro do Centro Comercial Babilónia, na Amadora; a Cleia Almeida e a Teresa Tavares estiveram num supermercado… Depois, fomos definindo as relações entre as personagens e as situações que poderiam acontecer…

Foi, portanto, um work in progress?
Completamente. Que acabou testado durante um mês de improvisações, já com as cenas escritas, respeitando os movimentos emocionais dessas mesmas cenas, sendo dai que saiu o guião definitivo.
Deixe-me só voltar aos actores e ao desenvolvimento das personagens nas suas profissões… Até que ponto é que essa experiência dá realismo e consistência às interpretações?
Ao contrário do que o senso comum pensa, adaptar uma personagem a um meio não é imitar figuras desse mesmo meio. O processo passa por permitir que o meio entre dentro do actor por contágio. Um exemplo simples: eu sou do Porto e já não tenho grande sotaque; se estiver lá uns dias, o sotaque e o modo de construir as frases voltam naturalmente. E, repare, não estou a imitar ninguém. Acontece, naturalmente, por contágio.
Todo este processo garante uma autenticidade perturbadora às personagens de Sangue do Meu Sangue e, curiosamente, a personagem do Nuno Lopes – o dealer – surge no filme como um pai extremoso, nada fazendo antever o “monstro” que é.
Toda a autenticidade parte do trabalho e da entrega dos actores e, tal qual como na vida real, as pessoas são assim. Lembro que há uns bons anos atrás, num restaurante no Algarve, na mesa ao lado da minha, estava um edil que agora anda com problemas com a justiça a jantar com a família; não imagina como ele era um avô babadíssimo com os netos… [risos]

O filme sublinha o fascínio, por um lado, e o desconhecimento, por outro, dos mundos co-existentes na sociedade portuguesa. Refiro-me, por exemplo, à justificação que a Márcia (Rita Blanco) encontra para o caso da filha com um homem casado e bem-sucedido e o desconhecimento revelado por Maria da Luz (Beatriz Batarda), a senhora da alta-sociedade, em relação à existência de uma realidade que ela não conhece ou não quer ver.
Como em todos os meus filmes desde Sapatos Pretos quero que o espectador veja uma parte do Portugal que as pessoas sabem que existe mas não conhecem. O meu cinema é político nesse sentido, porque tenho a convicção que é muito difícil pôr o português a olhar para si próprio. Lisboa, por exemplo, não é, de modo algum, aquilo que aparece nos bilhetes-postais. Eu próprio fiquei surpreendido quando descobri que o melhor do subúrbio é o bairro social – a construção selvagem, sem espaço e sem convivialidade, é muito pior. Infelizmente, os lisboetas de hoje são maioritariamente pessoas que habitam os subúrbios. E essa fórmula de eixo Amadora-Sintra já se espalhou por todo o país… vou, precisamente, fazer um documentário sobre isso.

É um director de actrizes?
Não me considero um director. Descobri há muito tempo que não se dirigem actores, trabalha-se com eles. Mas, claro que prefiro trabalhar com actrizes porque gosto dessa capacidade de entrega e de disponibilidade que é biologicamente inerente à mulher.

sábado, 22 de outubro de 2011

Números para a desinformação

Soube-se há dias, pela imprensa, que o Banco de Portugal, essa instituição de credibilidade imaculada, concluiu que os funcionários públicos ganham 15% a mais que os trabalhadores do privado. O estudo, incólume e com toda a certeza rigoroso no uso do método cientifico, aponta o interessante número de 1.491 euros como média de ordenado no Estado e, como o horário de trabalho no público é mais reduzido que no privado, o valor hora vale, em média, 10,50 euros contra apenas 5,50 no privado.

A estes dados soma-se uma conclusão (natural): os quadros técnicos superiores ganham mais no privado que no público; o inverso sucede quando se tratam de trabalhadores menos qualificados. Segundo a imprensa, nada mais a assinalar! Nem sequer uma explicação acerca da forma como se chegou a estes valores. Apenas o olhar sobre os resultados de um estudo que aparece menos de uma semana depois de Passos Coelho ter atacado violentamente os funcionários públicos e os pensionistas, e ter usado, precisamente, estes argumentos para legitimar o corte nos subsídios de férias e natal (até porque já toda a gente esqueceu as horas extraordinárias que vão passar a valer metade no Estado).

Como já alguém disse, as médias são sempre muito perniciosas. Neste tipo de estudo é essencial questionar qual foi o universo-alvo. Terão sido apenas os funcionários públicos (e da administração local) ou estarão incluídos os trabalhadores das empresas públicas, institutos públicos, fundações ou outras entidades que têm regras de gestão autonomizada, muitas delas na esfera do direito privado? Repare-se que, em inúmeras instituições públicas, uma parte considerável dos contratos de trabalho obedecem a regras semelhantes às do sector privado e os ordenados não correspondem, efectivamente, às tabelas de vencimentos em vigor na administração pública.

Outro número que pairou sobre a cabeça dos portugueses ao longo da semana foi o das vítimas da medida criminosa defendida pelo Orçamento do Estado para o próximo ano: mais de 400 mil portugueses, sendo que (segundo o governo) 88% dos pensionistas ficam fora da medida (será porque têm pensões que não atingem o ordenado mínimo nacional?).

Por entre os números, dados como estes escamoteiam os baixos salários que se praticam em Portugal, fragmentam o universo dos trabalhadores, corrompem a razão e legitimam uma medida que, evidentemente, também vai ter repercussão no sector privado. A imprensa portuguesa, cada vez mais amorfa e obediente a vontades estranhas à liberdade e ao direito de informar, vai fazendo o jeito e, assim, contribui para a desinformação. À boa maneira da propaganda de guerra!


Apenas uma nota: às declarações de Passos Coelho, parafraseando Cavaco há mais de dez anos - ele que, por sua vez, usava a imagem do Leviathan de Hobbes -, “atacar o monstro” não pode ser destruir o País. Neste momento, o “monstro” é o sistema com que este governo pactua e, pior ainda, protege à custa de empurrar Portugal para o sub-desenvolvimento.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Da doença nacional

Que Portugal é um país doente já ninguém duvida. Dois sintomas claros são o silêncio e o esquecimento. Para não ser forçado a recuar aos que estão ligados ao agravamento sucessivo da maleita, não deixa de ser curioso o silêncio do ex-primeiro-ministro ou do ex-ministro das finanças que, perante os ataques deste novo governo, deveriam ter a dignidade de defender a honra. Ou então, numa postura condigna com o estatuto de antigos governantes, colocarem-se à disposição do povo, através dos múltiplos instrumentos do Estado de direito, para serem prestados esclarecimentos acerca do estado a que chegámos.

Provavelmente, estarei a ser assolado por algum sopro de frio islandês ao desejar pensar os ex-governantes de Portugal como gente de bem e os portugueses como um povo determinado a não pensar que a democracia se esgota nas urnas de voto. Mas, voltando à vaca fria, deixem-me confessar que gostaria de acreditar no velho provérbio “quem não deve, não teme”, bem como, em algo que deveria ser por cá muito mais do que uma abstracção, quer para os agentes políticos quer para os cidadãos. Refiro-me, naturalmente, à justiça.

Depois de anunciar as medidas terroristas e criminosas (como o tempo, tragicamente, dará razão a esta adjectivação!) contidas no Orçamento do Estado, no último fim-de-semana o primeiro-ministro sugeriu que quem gere mal a coisa pública deve ser julgado pelos tribunais. Apesar de todos sabermos que tal não passou de um desabafo inconsequente de alguém que seria certamente réu nesse projecto de intenção, não deixa de ser estranho o silêncio daqueles que, afinal, querem ser esquecidos. Nem que seja por momentos (para depois, à semelhança de outros, voltarem como se nada se tivesse passado), a isso chamar-se-ia honra.

Infelizmente, honra e justiça são, em Portugal, matérias do silêncio e do esquecimento.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

E a Grécia aqui tão perto

Há quem diga, numa talvez pouco graciosa (e até mesmo sensacionalista) teoria da conspiração, que o FMI elegeu a Grécia, e consequentemente Portugal, para exercícios empíricos de pressupostos económicos inéditos. Ou seja, a gregos, mas também a portugueses, como europeus de segunda que são, serve à medida a carapuça de cobaias. Basta querer, que os homens de mão de lá, como os de cá, estão sempre à altura do mandamento.

Não sei se é o FMI que lidera o improvável plano mas, seja lá quem for, e montando o puzzle da inverosímil teoria, vamos percebendo que nós, os portugueses, somos mais gregos do que julgávamos. Historicamente e, sem contar com o legado cultural e filosófico herdado, durante o século XX sofremos a penumbra da ditadura; fomos praticamente contemporâneos na entrada para a CEE; fomos quase gémeos no modelo de desenvolvimento apontado pelos iluminados burocratas de Bruxelas para os nossos países; fomos perfeitos a eleger os piores políticos que, consequentemente, formaram maus governos; e, agora, partilhamos austeridade que se confunde cada vez mais com brutalidade.

Se os gregos chegaram primeiro ao declínio imposto e/ou conspirado (vá-se lá saber...), os portugueses caminham vertiginosamente para os apanhar. Sendo o cinto dos trabalhadores gregos mais folgado que o dos portugueses, o desastre demorou quase dois anos a instalar-se em toda a plenitude. Por aqui, com ou sem conspiração do FMI, depois do Orçamento do Estado para 2012 apresentado por Passos Coelho, temos a garantia que vamos ser gregos mais depressa do que esperávamos. Por este caminho, a taça que não desejamos vai mesmo ser nossa.